APALPARAM AS COSTAS DA BEL
1° CAPÍTULO
Quando apagou-se a luz e o elevador parou, Bel sentiu o toque daquela mão em suas costas.
Não se tratava de toque casual, não podia ser acidente, engano causado pela escuridão.
Não.
Era uma mão resoluta que a afagava. Uma mão que sabia o que fazia.
Apalpou-a, a mão macia e firme, doce e decidida, a mão cheia de longos dedos apalpou-a dos alicerces da coluna até o terraço da nuca, e o fez numa escalada vertiginosa, espalmada, os dedos bem abertos, quase sôfregos.
Apalpou-a com vontade de a apalpar.
A princípio, Bel assustou-se com o toque, suas costas ficaram em côncavo, seu peito ficou em convexo, sua boca ficou em círculo, de sua garganta quase pulou um ó, mas o ó não pulou, dissolveu-se nas papilas gustativas do fundo da língua, Bel se conteve, parou, esperou e… gostou.
Era bom sentir o toque daquela mão em suas costas. Bom… Tanto que queria mais. Ali, sob uma colcha de escuridão, teve vontade de pedir: “Me apalpa… Me apalpa…” Mas não pediu. O freio milenar da Civilização a impediu.
Restou a dúvida: de quem seria aquela mão?
2° CAPÍTULO
Bel usava um vestido de verão aberto na parte de trás. Sabia que suas costas eram atraentes. Sabia-se ela inteira atraente.
Loira, lábios de gomo de bergamota poncã, o corpo moldado por três dias de natação por semana, Bel podia arruinar um homem, se quisesse. Até arruinou um, certa vez: André, um advogado que perdeu tudo por ela, tudo!, mas que ainda hoje lhe lamberia as solas dos escarpins, se Bel pedisse.
André também estava no elevador quando a energia faltou, e sofria. A razão do sofrimento?
Bel.
Pudera: Bel bebia o capitoso licor dos 27 anos de idade. Era ainda jovem e, por jovem, seu corpo possuía carnes tenras e frescas como as manhãs de primavera nos altos dos Alpes. Admirá-la era como admirar uma felina se espreguiçando, era provar um pedaço da natureza indomada, era mastigar um naco sumarento da fruta mais açucarada. Ao mesmo tempo, havia lucidez naquela beleza. Bel já acumulara a experiência de uma mulher que sabe o que fazer, como fazer e, sobretudo, com quem fazer. Sim, Bel sabia avaliar um homem, sabia quando ele poderia satisfazê-la em seus desejos mais recônditos.
Ou quando não passava de uma fraude.
Por ironia, Bel atravessava uma fase de indecisão a respeito do seu próprio marido, o supervisor Noel. Será que Noel a merecia?
Será que ela não devia ceder aos seus impulsos, que eram tantos? A seus quereres, tão pulsantes? Será que Noel não passava de uma fraude bem-enjambrada?
Bem-enjambrada, sim, poder-se-ia dizer isso do supervisor Noel, porque ele era um homem desejado pelas mulheres. Não apenas por ser moreno, alto e ter porte atlético, mas porque jamais se intimidava diante de uma fêmea da espécie. Quando queria uma, sempre (sempre!) tentava conquistá-la.
Noel vivia para as mulheres, essa a realidade. No exato instante em que avistava uma mulher pela primeira vez, podia ser diante da gôndola de repolhos do supermercado, sobre a franja do meio-fio da calçada, numa curva da fila do banco ou entre os goles vodka com Red Bull de uma festa, não interessava onde nem como, naquele mesmo segundo, Noel cogitava: essa eu levaria para a cama? Ou não levaria?
Se a resposta fosse “sim”, a mente treinada de Noel começava a trabalhar no sentido de avaliar suas chances de colocar o projeto (levá-la para a cama) em prática. Ela parecia minimamente interessada? Havia possibilidade de abordá-la? Se houvesse, qual a melhor estratégia a empregar?
A partir de então, Noel tentava. E às vezes, muitas vezes, conseguia.
Quando a escuridão se fez no claustrofóbico espaço do elevador, o supervisor Noel dava sequência a mais um de seus planos, este um pouco menos sofisticado do que os de costume. Estava bem à frente de Bel. Logo, dificilmente seria ele o dono da mão que a acariciara nas sombras. Na verdade, no exato segundo em que a energia faltou, o supervisor Noel nem sequer pensava nas costas lisas de sua mulher Bel.
Pensava era na bunda de Bruna.
3° CAPÍTULO
Bruna também trabalhava no escritório, e tinha o hábito de levar a bunda junto para todo lugar que fosse.
Noel ficava sentado atrás da sua mesa de supervisor, bem no centro geográfico do escritório, e passava o dia inteiro esforçando-se para manter no rosto um ar de supervisor.
Não era fácil. Não com Bruna por perto.
Porque um supervisor supervisiona. Logo, tem de ter certa autoridade sobre os supervisionados. Logo, tem de ser sério. Mas, durante o expediente, o supervisor Noel volta e meia erguia a cabeça de seus papéis de supervisor e via Bruna ondulando em sua direção e sabia que ela traria aquela bunda com ela.
Era o que acontecia, invariavelmente. Bruna passava com sua bunda bem redonda e bem grande e bem arrebitada e bem dura, uma bunda tão dura, mas tão dura que Noel suspeitava poder quebrar um dedo, se lhe pespegasse uma palmada na curva do glúteo. Noel não conseguia não olhar para aquela bunda balouçante, não conseguia não pensar naquela superbunda, e aí não havia seriedade que se sustentasse. O desejo pela bunda de Bruna tomava conta da alma de Noel e em seu rosto desfazia-se o ar sisudo que todo supervisor deve ter.
E agora, justamente agora que a luz apagou, aquela bunda se lhe oferecia. Bruna estava paradinha em frente a Noel, precisamente em frente. Diante dela, a dez centímetros da ponta de seu nariz empinado, havia a barreira da porta fechada do elevador. Atrás dela, a cinco centímetros de sua bunda de bola de couro número 5, os dedos sequiosos de Noel estremeciam ante a gana quase irresistível de boliná-la.
O desejo de afagar um gomo da bunda de Bruna foi a segunda sensação que Noel teve depois que a luz apagou. A primeira foi a surpresa motivada pela escuridão, que o fez emitir um oh, enquanto um homem disse epa, outro falou opa, uma mulher gemeu meu Deus, outra deixou escapar um aiai. Feitas as exclamações e instaurado um silêncio constrangido, Noel pensou, com os dentes rilhados e o coração galopante: vou beliscar a bunda dessa Bruna!
Vou aproveitar que a luz apagou e vou fazer isso agora mesmo, vou torcer um naco deste bundão, deste rabo imenso, desta obra abençoada do Senhor, porque, em sua inesgotável sabedoria, o Senhor fez essa bunda para isso, para ser tocada, alisada, aproveitada, beliscada! Beliscá-la é tecer louvores à obra do Todo-Poderoso, é um ato de devoção, é uma prece ao Criador.
Em nome de Deus, vou beliscar! Vou! Vou!!!
E aproximou a mão mais um centímetro das carnes musculosas da bunda de Bruna.
4° CAPÍTULO
Bruna nem sequer desconfiava dos riscos pelos quais sua bunda passava, mas, por coincidência, era nela que pensava.
Na bunda.
Não aguentava mais constatar que sua bunda crescia a cada dia. De manhã cedo, ao mirar-se de perfil no espelho grande do banheiro, notava que a retaguarda ganhara reforço. O que acontecia à noite? Será que as bundas crescem durante o sono? Decidiu que não ia mais comer o mil-folhas do bar do escritório. Nunca mais! Ou, talvez, um mil-folhas a cada 15 dias… Não. Um por semana. Às sextas. Isso. Afinal, a sexta já é fim de semana.
Maldito mil-folhas aumentador de bundas. Ao mesmo tempo… Bruna tinha de admitir: gostava de ter uma grande e redonda bunda, gostava de saber que os homens a admiravam, só lamentava que não se concentrassem mais nela, na bunda, durante o… oh, era-lhe penoso admitir até para si mesma… sim, era difícil pensar que gostava daquilo… durante o… durante o amor. Bruna corava ao pensar em como gostaria de ter sua bunda alisada e apalpada e possuída em meio ao… ao… ato…
Enquanto isso, a mão de Noel aproximou-se mais um centímetro. Ele chegou a sentir nos artelhos as emissões de calor vindas da bunda gigante de Bruna.
Ia beliscar. Ia! Ah, ia!
Ia?
Não sabia se ia.
Noel ficou em dúvida. Reteve a mão.
Porque cogitou: e se ela não gostasse? E se gritasse? Seria um escândalo. Até porque sua mulher Bel estava ali atrás. Uma maldição trabalhar no mesmo local que a mulher. Um suplício. Pois, para Bel, o supervisor Noel era sempre suspeito de infidelidade. Não por causa de Bruna e sua bunda de aço. Por causa de outra überbunda.
A de Joana.
5° CAPÍTULO
Joana era uma ex-gorda. Essa informação diz muito a respeito de uma mulher. Quando entrou no escritório, Joana tratava-se apenas de uma gordinha com rosto bonito, como tantas outras gordas de rosto bonito que rolam pela cidade.
Só que Joana, ao contrário de todas as outras gordas, foi emagrecendo. Emagrecia a cada dia, fenômeno reparado em primeiro lugar pelo contador Ilson. Todos os dias, quando Joana irrompia no escritório, o contador Ilson deslizava até a mesa do supervisor Noel e sussurrava-lhe no ouvido:
— Essa gorda tá afinando…
Noel começou a prestar a atenção na gorda. Primeiro lançava-lhe olhares divertidos, mas, com o passar das semanas, a coisa foi ficando séria. Até o dia em que ela afinou em definitivo. Foram meses de academia e regime, meses de suores e privações, para que, uma manhã, nos píncaros do verão, Joana despertasse de um sono restaurador, conseguisse se enfiar em um jeans justo que ressaltou suas nádegas de ex-gorda, se olhasse no espelho, virasse de perfil e constatasse:
— Fiquei gostosa!
E então olhou para o teto do quarto como se fosse para o firmamento azul, ergueu as mãos como em uma oração e repetiu, num brado de vitória:
— Fiquei gostosaaaaaaaaa!!!
Neste dia, Joana galvanizou os olhares de todos os homens que passaram perto dela. Um em especial. Um admirador de derrières. Um especialista. O supervisor Noel. No instante em que ela pisou com seu pezinho 36 sobre as colônias de ácaros do carpete do escritório, o olhar ávido de Noel colou nela e não descolou mais.
Hipnotizado por aquela polpuda bunda desenvolvida à base de pizzas, calzones e carboidratos em geral, e moldada por levantamento de pesos diários, Noel tomou uma decisão, e a externou para si mesmo falando baixinho, enquanto ela passava:
— Preciso me perder nas carnes dessa ex-gorda!
Perdeu-se. Mesmo. Passou a assediar a ex-gorda por MSN — por escrito era mais fácil de se soltar. Soltou-se ele, soltou-se ela, soltaram-se ambos como cotovias no verão e, em alguns dias, já trocavam mensagens ardentes, ele prometendo possuí-la feito um tiranossauro-rex adolescente, ela avisando que ia cobrar a promessa. Duas semanas depois, combinaram um encontro esconso no depósito, no horário de almoço.
Assim fizeram.
Enquanto os colegas mastigavam melancólicas almôndegas no refeitório, Noel e Joana esgueiraram-se para a sordidez do depósito, cada qual com sua desculpa. Noel chegou antes, escorou-se numa prateleira e ficou à espreita, sentindo-se um Brad. Joana apareceu cinco minutos depois. Vestia uma saia escocesa. Seus joelhos redondos e seu sorriso malicioso reluziam. Ao vê-la, Noel salivou como um Rotwailler e, como um hotwailler, a atacou. Sem emitir palavra, levantou a saia escocesa e, como ansiava havia dias, imiscuiu-se pelas carnes brancas de Joana.
Foi rápido. Mas foi bom.
Pena que tenha sido com testemunha. Quem? Noel nem desconfiava. Talvez algum almoxarife desocupado, algum estafeta perdido tivesse visto tudo e tudo espalhou pelo escritório. O horário de expediente não se encerrou sem que metade do corpo funcional da empresa tomasse conhecimento até das minúcias melequentas ocorridas no depósito durante o almoço. A outra metade tomou conhecimento no dia seguinte, incluída nesta metade a loira Bel. O casamento entrou em crise, eles quase se separaram, Bel quase intimou Joana, quase pediu demissão.
Quase, quase, quase. Não consumou nada. Engoliu sua raiva como quem mastiga bife de fígado, fez de conta que acreditava nas negativas de Noel e passou a ruminar ideias de vingança. Noel tinha de pagar. E Joana também.
Exatamente por imaginar que Bel ainda alimentava anseios de vingança, Joana refugiara-se no fundo do elevador, mas não tão fundo que não pudesse acessar as costas da mulher do supervisor Noel. Seria ela a alisadora? Se fosse, com que intento alisou?
No momento do corte de energia, Joana ruminava dois sentimentos:
Sentimento 1: Um pouco de receio por estar tão próxima da rival.
Sentimento 2: Muito desejo de poder repoltrear-se no espaguete com filé à parmeggiana que sua mãe estava preparando naquele minuto, no etéreo subúrbio da sua infância.
Oh, a massa da mãe, massa feita em casa, que se sente nos molares, não era como essas massas de supermercado, impessoais como um sorriso de recepcionista. Que massa, a massa da mãe, e ainda acompanhada de filé à parmeggiana, Jesus!, que tentação! Mas Joana precisava se conter de qualquer maneira. Conquistara aquela forma física com tanto empenho que não seria um prato fumegante de massa com filé à parmeggiana que a derrotaria. Tinha de ser forte. Tinha de lembrar-se da recompensa que auferia todos os dias: o olhar cobiçoso dos homens. Eles a queriam, como a queriam! O supervisor Noel não resistiu a ela, mesmo sendo casado com a loira Bel, que sempre se achou a Bündchen do escritório. E o contador Ilson! Não passava um único dia sem que ele tentasse assediá-la. Joana percebia como Ilson olhava para sua bunda. Todos os dias ele olhava, todos os dias! Achava, Joana, que o contador Ilson era um obcecado por sua bunda.
Mas não era para a bunda de Joana que o contador Ilson olhava no momento em que a luz apagou. Ilson estava parado a dois palmos e meio de Joana, a sul-sudeste das costas de Bel, a quem, secretamente, desejava como jamais havia desejado uma mulher ou um cachorro ou uma comida ou um emprego ou qualquer outra coisa na vida. Secretamente, sim, porque Bel era mulher de seu amigo Noel. Mas Noel não a amava, Ilson sabia que não. Ou pelo menos supunha, devido a tudo que Noel lhe dizia em particular a respeito do seu casamento. Foi por isso que Ilson incentivou Noel a abordar a ex-gorda Joana. E foi por isso que Ilson contou para Lili o que Noel e Joana fizeram no depósito.
Ilson sabia do encontro de Noel com Joana e sabia que Lili ia derramar a história em todos os cantos do escritório. Lili tinha uma gana incontida de revelar ao mundo os segredos das vidas de seus colegas. Lili era uma espécie de jornalista diletante, uma divulgadora de ocorrências. E, os maledicentes diziam, gostava de fazer festinhas com parceiros de todos os sexos, o que não tinha nada a ver com o fato de ela ser fofoqueira, mas era delicioso de saber.
Lili era morena e alta. Suas pernas eram dois troncos de carne rígida da cor de chocolate ao leite que emocionavam os homens.
Emocionavam mesmo.
Certa feita, Rafael, outro colega de escritório, sentiu lágrimas lhe marejarem os olhos quando, por acidente, roçou o cotovelo áspero nas coxas macias de Lili. Naquele dia, ela vestia um vestido curto e leve como a consciência de uma bandeirante. A mesa em que trabalhava situava-se ao lado da de Rafael. A tarde esvaía-se em ritmo de bolero, nada de empolgante parecia prestes a acontecer, até Lili emitir um gritinho:
- Minha tarraxiiiinha!
- Que tarraxiiiinha? - surpreendeu-se Rafael.
- Do meu brinco - miou Lili, e já foi se abaixando para procurá-la na floresta de pêlos encardidos do carpete, e Rafael agachou-se também, e neste balé de movimentos desencontrados deu-se o que se deu: as coxas nuas de Lili roçaram na ponta do cotovelo de Rafael.
Foi um momento de glória na vida dele, um instante que o inspiraria pelos dias, semanas e meses seguintes na prática do prazer solitário, ele em seu quarto de solteiro, deitado na cama, o coração aos pulos, a mão fremente, a cabeça recordando das coxas de Lili, da sensação de tocar nelas, e imaginando-se a lambê-las e a afagá-las e a tê-las só para si pelo menos durante um par de horas, pois aquela fração de segundo entre as mesas de trabalho, em cima do carpete jamais lavado do escritório, aquele átimo de cotovelo duro contra coxa tenra, aquela fugaz impressão havia sido a ocorrência sexual mais importante da existência de Rafael, um triste virgem.
Pior: um envergonhado virgem, já que tinha 22 anos de vida, 22 anos!, e, pelo que havia apurado, devia ser o único virgem com essa idade respirando sobre os oito milhões e quinhentos mil quilômetros quadrados do território brasileiro. Rafael sofria com a abstinência forçada, mas, depois de encostar nas coxas de Lili, o sexo revestiu-se de outro significado para ele. A percepção da textura da pele de Lili penetrou nos poros do cotovelo de Rafael como se fosse um veneno líquido, e através deles alcançou a corrente sanguínea e por veias e artérias espalhou-se pelo corpo inteiro, inflamando-lhe o coração, embebendo-lhe o tecido do cérebro, possuindo-o como uma moléstia incurável.
Rafael tornou-se ele todo Lili, Lili nos olhos, Lili na língua, Lili no sexo.
Ele era Lili. Lililililili.
E agora eles estavam juntos naquele elevador enguiçado, no escuro, tão próximos, tão íntimos, só que lamentavelmente acompanhados por um pelotão de colegas inconvenientes. O que aqueles intrometidos estavam fazendo ali? Ali? Lililililili…
Rafael decidiu que se aproximaria de Lili. Precisava aproveitar a oportunidade para tocar nela mais uma vez, sentir sua pele quente, seu cheiro de morena-jambo, a força que emanava das duas pilastras de carne que eram suas pernas. Bastava dar um passo. Um passo, e nada mais, e se colocaria a um braço de distância dela. Um passo… Um movimento tão básico, mas tão complexo naquela situação, simplesmente porque não havia espaço para dar-se um passo no interior do elevador.
Os corpos humanos como que se amontoavam naquela caixa exígua, um grudado ao outro, flancos contra flancos, peitos contra costas, coxas coladas em coxas. Qualquer movimento no extremo leste do elevador seria transmitido em ondas musculares de corpo para corpo, e se refletiria no extremo oeste. Quando os colegas de escritório se aglutinaram naquele cubículo estabeleceram uma regra implícita, uma combinação não dita, mas essencial para o convívio social: permaneceriam imóveis, em respeito mútuo, durante os breves segundos que o elevador levaria para descer os andares, chegar à segurança do térreo e abrir suas portas para a liberdade e a amplidão da rua.
Mas isso não aconteceu. O elevador enguiçou, os minutos escorriam pastosos e, agora, o acordo implícito estava prestes a se quebrar. Não existiam mais as condições que o tinham determinado. Os humanos ali aprisionados não deviam ficar ali aprisionados, não deviam manter contato tão próximo e tão promíscuo durante tanto tempo. Estava errado aquilo, e as pessoas intuíam que estava errado. Mantinham-se em silêncio, cada qual com sua dor, mas sentiam que a distância entre a paz e a guerra é, às vezes, uma única ação, e a menor delas, que significasse invasão do espaço alheio, poderia significar a laceração do equilíbrio precário que existia até então.
Esta ação poderia ser o passo de Rafael. Em um segundo, ele teve a percepção de tamanho perigo. Mas no segundo seguinte lembrou-se das coxas de Lili e, desassombrado, avançou.
Avançou!
Rafael esticou a perna por entre os corpos na escuridão, infiltrou o torso em meio a outros torsos, motivando uma série de protestos nem tão surdos assim, de gemidos de indignação, de uis e ais e eis. O que estava acontecendo? Quem se movia naquele lugar tão conflagrado?
Rafael não se abalou, foi, foi, foi!
Aproximou-se de Lili, estava quase lá, parou. Havia um único obstáculo entre ele e ela, um único corpo que o impedia de empalmar os peitos duros de Lili, de acoplar-se em suas coxas cor de canela, misturar-se a ela de uma maneira que nem todos os braços dos homens do escritório seriam capazes de desencaixá-lo. Era um obstáculo e tanto. Se tentasse removê-lo, na certa causaria uma revolução no elevador.
Devia fazer isso? Por que não? Devia, sim. Devia, devia, devia, claro que devia. Devia!
AVANÇOU!!!
7° CAPÍTULO
Rafael tentou passar pelo obstáculo. Movia-se repetindo mentalmente: “Vou me acoplar nela, vou me acoplar nela, é hoje que me acoplo!”
O obstáculo chamava-se André, o advogado que teve a vida arruinada por Bel. André, naquele centésimo de segundo, experimentava o ápice da irritação, não apenas porque o movimento brusco de Rafael agastou a todos no elevador, deslocando-os e espremendo-os uns contra os outros, mas também porque ele, André, vivia uma situação especial: André era um homem apaixonado, e poucos males corroem tão profundamente a alma de um homem quanto a paixão. Um homem apaixonado é um homem doente. André era um homem doente, contaminado por Bel. Ela o havia humilhado, ela o havia transformado em um verme, e o que isso fizera a André?
Fizera-o ainda mais apaixonado.
Sua história era uma história de dor. Uma história que devia ser contada com violinos plangentes ao fundo.
Um dia, André teve uma jovem mulher e duas formosas filhas. Teve também um apartamento de cobertura com piscina no terraço e uma caminhonete importada com TV no painel, teve prestígio por ser executivo da firma, teve subalternos solícitos, teve agentes de viagens agradecidos.
Mas ele perdeu tudo isso.
Por causa de Bel.
Aconteceu que durante semanas André promoveu um assédio furtivo a Bel nos corredores do escritório. Bel não o repudiou. Ao contrário, intumesceu-o de esperanças. Isso pôs André maluco. Uma mulher linda daquelas, casada, seria sua? Era bom demais para crer. Melhor ainda: ela era casada com aquela besta do supervisor Noel, sujeito a quem André desprezava e com quem, de certa forma, rivalizava. André era mais importante do que Noel na empresa, ganhava mais do que ele, tinha um cargo superior, mas Noel trabalhava há mais tempo lá e ocupava um cargo estratégico. Volta e meia, Noel punha-se em seu caminho, atrapalhando, se metendo, falando demais. André o detestava. Conquistar-lhe a mulher teria um sabor especial.
Então, André dedicou-se a Bel, cercou-a, teceu planos para conquistá-la e, em meio a essa campanha, se apaixonou. Decidiu que seria capaz de fazer tudo para tê-la. Dizia isso para Bel, e ela sorria:
— Você é casado… Se não fosse…
E suspirava. Sim, ela exalava suspiros cheios de reticências… Foram esses suspiros que roubaram a sensatez de André. Porque lhe pareceram promessas…
Um dia, desesperado de amor, ele desabafou com sua mulher, confessou que amava outra, pediu a separação. Achava que a mulher ia chorar e se descabelar. Que nada. Ela apenas disse:
— Tá bem.
E acionou um advogado feroz, e tirou-lhe metade do que tinha, e levou-lhe os filhos, e ele sofreu, como sofreu, mas pensava: pelo menos terei o amor da minha vida. Terei Bel. Procurou Bel.
— Estou livre! — anunciou, esfregando as mãos. — Agora podemos viver o nosso amor!
E Bel:
— Ficou louco??? Que amor???
André argumentou que ela havia feito promessas. Bel:
— Que promessas??? Sou uma mulher casada! Me deixa!
Foi como se a vida de André tivesse acabado. Agora, no breu do elevador, André só pensava em Bel. Como, aliás, fazia durante todas as horas e minutos e segundos do seu dia, desde que ela o havia rechaçado. Pensou, André, que a queda de energia era um sinal do Senhor, quase uma ordem celeste para que agisse.
E ele agiu.
8° CAPÍTULO
André esticou o braço para tocar em Bel, mas naquele instante o ombro de Rafael o deslocou. Já bastante irritado por sua paixão frustrada, por estar apertado, por estar vivo, André gritou:
— Ei!
E reagiu.
Empurrou quem o empurrava. Ou, pelo menos, achou que estava empurrando quem o empurrava. Não estava. Empurrou Lili, que, inadvertidamente, empurrou Noel, que empurrou Bruna, que empurrou Noel de volta, que empurrou Joana, que empurrou Ilson, que empurrou André, que mais irritado ficou e vibrou novo golpe no ar, que no ar não parou, mas sim no queixo de Ilson, que grunhiu de dor e xingou Rafael, que nem ligou, estava concentrado em Lili, queria Lili e, como ninguém se via naquele lugar, e ninguém se entendia também, achou que podia enfim ter Lili, fazer com Lili o que sempre quis fazer, ou seja: tudo. Lili. Lili. Lililililililili. Só que Rafael não era o único a sentir os instintos protegidos pelo anonimato da escuridão.
Ninguém via nada, ninguém saberia quem era o autor de qualquer ato.
Estavam todos juntos, eles e suas histórias em comum, certos de que experimentavam um momento único de impunidade garantida, como se fossem todos deputados e vivessem em Brasília. Este sentimento se acentuou com o intenso deslocamento de corpos no elevador, fazendo com que os seres humanos mais se amontoassem, muitos protestassem, alguns até gritassem.
Bel foi atirada para outro quadrante do elevador. Ainda não se reequilibrara por completo, ainda não firmara bem o peso do corpo sobre suas duas pernas macias quando sentiu outra vez aquele toque. O mesmo toque. Indisfarçável. Gentil, mas profundo. Um toque de quem realmente queria tocar.
Que toque…
Que toque…
PENÚLTIMO CAPÍTULO
E então, como todos ali uivavam e gemiam, Bel afrouxou a vigilância de esposa e colega de escritório, a vigilância de uma educação pequeno burguesa, cristã, bem-comportada, e falou o que tinha vontade de falar. Falou baixinho, num mínimo gemido:
— Me apalpa…
Um sussurro, só, mas audível naquele ambiente tão restrito. Todos ouviram, inclusive o supervisor Noel, que se ouriçou, os instintos de macho vibrando com o perigo. Rugiu, ameaçador, sem nem saber para quem rugia:
— Larga a minha mulher!
Minha mulher. Era fundamental frisar a posse, mesmo que não soubesse a quem se dirigia: MINHA mulher. Enquanto falava, Noel virou-se para tentar atacar o suposto rival, e seu movimento brusco fez com que os corpos novamente trocassem de posição no elevador.
— Larga a minha mulher! — repetiu, tentando desferir um tapa no bolinador desgranido, mas acertando em um ombro desconhecido, gerando um ai fino, um ai de moça. Noel se assustou, ao compreender que errara o alvo.
No mesmo instante, André, agora menos irritado e mais decidido a aproveitar-se da situação, tomou com a mão direita um braço, tentando tomar o de Bel. Não era o de Bel, era o de Joana. André sentiu-lhe o cheiro quente de mulher e, mais torcendo que fosse do que tendo certeza de que era Bel, puxou a fêmea para si e murmurou, entre dentes:
— Deliciosa…
E beijou-a na boca. Era mais uma vontade que se realizava.
ÚLTIMO CAPÍTULO
Outra vontade que se derramava alma afora de um dos condenados do elevador enguiçado era a de Lili.
O que Lili queria?
Lili queria bater em quem lhe batera. Pois bateu. Atingiu o supervisor Noel com um soco bem no meio do nariz.
Ele se curvou gemendo e, no movimento, encostou-se em Rafael, que, no afã de acoplar-se em Lili, acoplou-se no supervisor. Encaixou-se em Noel como se fosse um cachorro possuindo uma cadela no cio, e ganiu:
— Acoplei! Gostosa! Acoplei! Gostosa! Acoplei! Acoplei! Acoplei!
Foi quando se romperam em definitivo todos os freios da civilização. Tudo contribuiu para que as normas de convívio social se diluíssem: o confinamento em espaço tão limitado, a proteção da escuridão e sobretudo aquele grito de me apalpa!, me apalpa!, um grito que anunciou o cruzamento do Rubicão da moral, um grito a dar a deixa de que todos ali podiam fazer o que ninguém pode fazer: o que tinham vontade de fazer.
E então a bunda de ferro de Bruna foi alisada, beliscada e, o impensável, mordida. Bruna, ao contrário de tirar a retaguarda do raio de ação do mordedor-beliscador-alisador, empinou-a mais, sorveu o prazer que aquelas mãos, aqueles dentes e aquela língua lhe davam, mas também golpeou com sua bolsa os flancos de alguém, não sabia quem, ela queria era fazer algo a respeito, e fazia: batia. Mas não no mordedor-beliscador-alisador, e sim no supervisor Noel, que naquele instante também apanhava de Lili e era agarrado por Rafael, o virgem, que o acolplara, e, em meio a tudo isso, alguém, ninguém soube quem, gemia:
— Me bate! Me bate!
Já o contador Ilson, ele conseguiu: afagou as costas de Bel, afagou-as com vontade e sofreguidão, prensando-a contra a porta do elevador, impedindo seus movimentos, quase que a possuindo à força, enquanto ela repetia:
— Me apalpa… Me apalpa…
Era demais: havia quatro mãos a apalpar as costas de Bel, quatro mãos que ora se roçavam, dedos sobre dedos; ora entravam em luta, uma tentando afastar a outra; mãos que a princípio disputaram aquelas costas, mas que logo entraram em um acordo implícito e mudo e concordaram em partilhá-la e aproveitaram cada centímetro daquelas costas, prensaram Bel, afofaram Bel, tomaram Bel, e Bel:
— Me apalpa…
Foi então que a energia voltou e, com a energia, a luz e, com a luz, a realidade insossa.
A porta do elevador se abriu. E as testemunhas do lado de fora viram uma cena dantesca: homens e mulheres comportando-se como se tivessem retornado a um tempo sem normas, sem leis, sem roupas e sem moral. Homens e mulheres que, por alguns segundos, deixaram-se possuir por seus desejos, realizaram-nos, fizeram apenas o que tinham vontade de fazer.
E foi horrível.
No momento em que a luz da Civilização incidiu sobre eles, eles compreenderam o que havia acontecido, no que tinham se transformado. Sentiram vergonha, deslizaram silenciosos para o mundo exterior, voltaram para as suas casas. E nunca mais falaram disso.
FIM
Texto extraído do blog do David Coimbra