DEFLORAÇÕES ANTOLÓGICAS



A idéia desta coletânea é melhor explicada pelas palavras de seu autor - "esta antologia não pretende ser um ensaio sobre a defloração, tampouco sobre a virgindade, apenas uma apreciação de como o assunto foi abordado por diferentes autores, em diferentes épocas reunindo textos e imagens que me trotavam pela cabeça e pelas estantes à espera de alguma organização". JMB.

A Bíblia, o Gilgamesh, o Decamerão, o Kama Sutra, Alceu, Aluísio de Azevedo, Apollinaire, Aretino, Casanova, Cleland, Chorier, Collona, Boyer D'Argens, Flaubert, Júlio Ribeiro, Lautréamont, Maupassant, Mirabeau, Musset, Pierre Louÿs, Roussel, Sade, Voltaire, todos abordaram o momento especial sem o qual não existiríamos: a famosa "primeira vez" de uma mulher.

Cento e onze excertos selecionados que cobrem os últimos 4.000 anos, do sacro à mais profana das pornografias, passando por um pouco de tudo, desde textos meramente descritivos, de frieza quase cirúrgica, até textos altamente poéticos, de intenso lirismo, sendo alguns engraçadíssimos, outros agressivos, violentos, refletindo as escolas literárias e os períodos em que foram escritos.

As inúmeras ilustrações foram extraídas, quase sempre, das edições originais das obras citadas.

Seguem-se alguns comentários sobre o tema, apenas para degustar

"Queira deus, queiram os deuses que eu possa realizar o que tenho em mente: / Romper suas barreiras virginais."

Cancioneiro de Beuern, século XIII

"Oh, Hímen! Oh, himeneu! / Porque me tantalizas tanto? / Por que me aguilhoas por apenas um doce momento? Por que não persistes? Por que desapareces / Porque, se persistisses além do doce momento, certamente me matarias?"

Walt Whitman

"Não seria a raridade dessa iguaria deliciosa que chamamos cabaço que causa aos homens tanto ardor e pressa?"

Abade Du Pratt

"Desfrutamos de um prazer extremo ao eliminar o inocente pudor de uma bela jovem que reluta em se entregar, ao forçar aos pouquinhos todas as pequenas resistências que ela opõe, a superar seus escrúpulos e chegar onde queremos."

Molière (Don Juan)

"E tua boca em lírio / Pálida flor estreita e virgem / é a vulva que elijo / para amante de meu membro."

Pierre Louÿs
"Amei Teormão / E não fiquei envergonhada / Mas tremia com meus medos virginais / E me escondi no vale de Leuta! E me escondi no vale de Leuta! / E me ergui do vale ; / Mas formidáveis trovões rasgaram / Meu virgem manto ao meio."

William Blake
"Que a menina recupere suas cores! / Depois de aprender o amor, / entre suas pernas sangra/ a romã fendida para sempre."

Raymond Radigue

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A PRECISÃO DE SHERYL


Cada vez que vejo a Sheryl Crow penso a mesma coisa. Sabe quem é: aquela cantora americana, gosto das músicas dela. Pois a Sheryl está preocupadíssima com a natureza, o planeta e talicoisa e, por conta disso, adotou costumes radicais. Entre eles um que revelou em certa entrevista: Sheryl usa apenas uma folhinha de papel higiênico para limpar-se.

Um único daqueles quadradinhos menores do que a palma da mão do Clemer.


Essa informação acerca de Sheryl me intriga.

Como ela consegue ser tão precisa? Tão… certeira? Então, se ouço a Sheryl cantar ou se a vejo em fotos ou na TV, sempre lembro: um único quadradinho de papel higiênico, um único!!! Tudo o mais sobre Sheryl é secundário para mim, por mais que ela já tenha feito.

É o que vai acontecer com Ronaldo Nazário, a partir de agora. As pessoas olharão para ele e pensarão: ele se regalou com três travestis! Três travestis!

Não tenho o menor preconceito contra travestis ou contra quem se relaciona com travestis. Não vejo nenhum problema, por Deus. Mas Ronaldo, ele que já teve Ronaldinhas e Raicas e Danielas Cicarellis, ele que já ganhou uma Copa do Mundo, que já fez gols às centenas, ele que já fez tanto por tantos, ele, agora, por muito tempo, será lembrado tão-somente por esse episódio.

Vou dizer: o mundo é mau.

Há certo tempo, entrou na Redação uma moça deveras formosa. Andava pelo mundo em cima de pernas compridas, que terminavam em nádegas redondas. Aliás, tornou-se célebre, entre os colegas, pela circunferência de suas nádegas.

- São as nádegas mais redondas que já vi! - dizia sempre um dos gaiatos aqui do Esporte.

- O mundo todo - comparava outro - as nádegas dela são o mundo todo. Redondas como o planeta.

Eram, de fato, bem redondas. Mas bem redondas. Todos só falavam naquelas nádegas redondas, até que um amigo nosso, de outra editoria, entabulou um caso com a dita cuja. Foi algo rápido. Porém intenso. Ao cabo do que, ela o abandonou e ele, ressentido, saiu pelo jornal divulgando os hábitos sexuais da moça. Relatou as preferências dela, inclusive uma que deixou a todos… como direi? Enfeitiçados. Isso: ficamos todos enfeitiçados.

- Então ela gosta disso? - perguntavam-se os colegas de Redação.

E, a partir daquele dia, qualquer um que a encontrava, pensava: "Ela gosta daquilo, sim, ela gosta daquilo". Os talentos profissionais da moça, suas nádegas redondas, suas pernas longas, sua simpatia, nada mais vinha em primeiro lugar. Apenas: "Ela gosta daquilo".

Já disse, o mundo é mau.

*Texto publicado hoje na página 59 de Zero Hora.

Textos extraídos do blog do David Coimbra
MEU COLEGA ASSASSINO



Uma vez, um colega meu matou a mulher. Trabalhávamos na mesma sala, uns quatro metros de carpete a separar a minha mesa da dele. Não posso revelar-lhe o nome, óbvio. Já estava em idade provecta, tinha os cabelos completamente brancos e uma tosse de afogado. Fumava muito e tomava lá uns remédios que lhe davam sono. Vez em quando, olhava para ele, ali no canto da sala, e o via cabeceando, piscando, piscando, até finalmente adormecer. Ressonava profundamente por alguns minutos, recostado à cadeira de trabalho, o queixo fincado no peito. Todos nós, colegas, respeitávamos seu descanso e tentávamos não fazer barulho, falávamos baixo, andávamos na ponta dos pés, fazíamos pst para quem entrasse.



Esse meu colega era bem uns 30 anos mais velho do que a mulher. De repente, por algum motivo, começou a desconfiar que ela o traía. Não sei se era verdade, mas suas suspeitas foram aumentando a cada dia e se agravando de tal forma que se transformaram em obsessão. Meu colega só pensava naquilo. Um sábado qualquer, ele havia bebido um pouco a mais com os amigos durante o mocotó do almoço. Alguém lhe fez uma insinuação ou cochichou uma denúncia, sei lá, e ele decidiu que iria pôr fim ao drama. Saiu marchando para casa, entrou no quarto, abriu uma cômoda e tirou de lá o revólver. Berrava pelo corredor:



- Vagabunda! Vagabunda!



Há quem diga que ela, em vez de refutar, em vez de gritar por sua fidelidade e seu amor, o enfrentou e arrostou, nariz erguido:



- Corno.



E que foi por isso que ele se descontrolou de vez e desferiu o primeiro tiro, atingindo a mulher num ombro ou perna, algum órgão não vital. Aí, sim, ela desesperou. Mesmo atingida, correu para a cozinha, tentando fugir. Ele foi atrás. Ela enfiou-se sob a mesa, ficou com as costas prensadas contra o azulejo da parede, encolhida, sangrando e choramingando. Ele se abaixou, levantou com uma mão a toalha que em dias mais pacíficos o casal usava nos cafés da manhã, e descarregou o revólver.



Sempre me impressionou esse caso. Nem tanto porque eu trabalhava tão perto de um assassino, mas pelo perfil dele: tratava-se de um homem de boa cultura. A cultura e a educação, como se sabe, são antídotos contra a violência. De que forma, então, explicar a reação do meu colega?



Encontro a explicação agora, ao entrar nos estádios de futebol de Porto Alegre e constatar que, cada vez mais, há bestas travestidas de torcedores. Porque, quase sempre, os mais violentos não são os mais pobres e os mais incultos. Esses destruidores do futebol, eles gastam dinheiro em bebida e em drogas, eles vestem camisetas caras, eles têm computadores e acessam a internet, eles combinam suas ações pelo orkut e pintam faixas com dizeres belicosos. Não são despossuídos. Os despossuídos, os trabalhadores, os homens de verdade não têm tempo nem paciência para essas jericadas.

Os violentos, portanto, não são mocinhos que nunca sentaram num banco de colégio. Não. São apenas burros. Eis o que era também meu velho colega, agora o entendo: era instruído, mas era burro. E nada é mais poderoso, e perigoso, do que a burrice.

Texto publicado hoje na página 54 de Zero Hora

Texto extraído do blog do David Coimbra
PASSAGEM

As pálpebras começavam a ficar pesadas quando a senhora Sofia Vallender depositou o livro sobre o criado-mudo, apagou a lâmpada de cabeceira e se dispôs a dormir.


No átimo de tempo transcorrido entre a lucidez e a inconsciência ainda tentou remomorar o que acabara de ler, mas foi inútil.

Adormeceu sabendo que como de costume nada recordaria no dia seguinte.

A leitura não lhe causava prazer. Era apenas uma maneira solitária de conviver com a própria solidão.

Anotava em uma caderneta os títulos. Já eram mais de cinqüenta só durante este ano, mas os conteúdos permaneciam nas sombras da memória.

No começo isso a incomodava, mas agora não fazia diferença, seguia lendo.


O rosto emoldurado pelo gris da rinsagem contrai-se levemente, enquanto o olhos se movem rápidos sobre as pálpebras fechadas.


Ao anoitecer caminha desorientada entre túmulos. Nas mãos, pequenos pedaços de granito branco.

De quando em vez para em frente a um deles e deposita uma das pedras.


A mãe penteia suas tranças e ajeita seu vestido enquanto prepara "lotion ritiun" no fogão a lenha.


O irmão recita as catilinárias cobrando-lhe atenção para seu latim jurídico.


No túmulo do pai permanece mais tempo.

Escuta o relato de sua fuga da Rússia para não servir o exército do Tsar. A travessia do atlântico como clandestino em um navio mercante. A ameaça de ser jogado ao mar quando descoberto. E a chegada a Buenos Aires. Por fim a vinda para o Brasil e o trabalho na estrada de ferro de Erebanco.

Deleita-se com o passado quando visualiza a sombra de um menino de calças curtas que acompanhado de um vira-lata circula entre as tumbas como se estivesse a inspecioná-la. Não sabendo bem por que resolve segui-lo.


Engordurou o pão torrado com os restos de manteiga, engoliu-o com alguns goles de leite morno.


Jogou a louça na pia sem disposição para lavá-la.


As fisgadas intermitentes nas pernas causavam-lhe desconforto.


Enquanto limpava a dentadura ouviu o ruído do jornal sendo colocado por debaixo da porta.


Abriu e fechou o guarda-roupa várias vezes antes de resolver o que vestir.


E, ainda com a imagem de suas rugas refletidas no espelho, saiu de casa.

Na fila do banco encontrou uma colega professora primária como ela e juntas recordaram os tempos de magistério. indagaram por amigas em comum e choraram os caraminguados recebidos.

Foi reconhecida por uma ex-aluna, que a cumprimentou, respeitosa. E, em troca, bombardeou-a com perguntas sobre o rumo que a vida tomara.


Bebeu suas respostas dadas em ritmos de despedida.


Ao vê-la se afastar, comentou com a colega: - imagine, tão moça e já casada!.


- As pessoas estão sempre com pressa nos dias de hoje! Resolveu voltar para casa.


Tanto tempo na fila só fizeram aumentar a dor nas pernas.

A primeira página do jornal rasgou quando Sofia tentou abrir a porta do apartamento.


Gemendo, encurvou-se para apanhá-lo.


O barulho forte de sua cabeça batendo contra o solo foi ouvido pela vizinhança.


Agora, o menino de calças curtas caminha mais rápido como se quisesse conduzi-la para algum lugar.


Quando a distância entre os dois aumentou e ela cansada ameaça desistir, o cão rosnando crave os dentes em seus calcanhares obrigando-a a seguir.


Por fim, homem e cão param em frente a um túmulo, o ultimo de uma sucessão deles. Ao lado uma cova aberta.

O vizinho atraído pelo barulho da queda reconheceu-a através da porta entreaberta e deu o alarme.


Logo, curiosos acumularam-se no corredor do edifício.


Alguém lembrou o médico do 22, mas ele não estava em casa.

A solução foi telefonar para o SAMU enquanto aguardavam a chegada da ambulância.
Os comentários insuscetíveis: - coitada da velha sempre sozinha. - tem um filho, mas ele pouco aparece. - filha mulher é sempre mais companheira. Mora muito tempo no prédio mas não conversa com ninguém. - olha a sala, mais parece um museu. - ela revirou os olhos, acho que vai dizer alguma coisa.


A curiosidade supera o temor, e Sofia, contornando o menino de calças curtas, reconhece o estranho personagem que olha com emoção pra a laje onde se lê "Moched Beyacomo Wallember", nascido em 1920, falecido em 1997.

Tem ímpetos de correr em busca da saída, lavar as mãos e fugir, mas o corpo não obedece ao seu comando.


Arremessada, fora dele sente-se flutuar no espaço.


A ansiedade da impotência segue-se o vazio. E ao olhar para baixo, uma sensação de neutralidade.

Os vizinhos assustados rodeiam o seu corpo.


O filho pega a pá e começa a jogar o primeiro punhado de terra.


Leo Trombka
ANA PAULA MAIA

A minha literatura é pulp, no sentido em que eu a estabeleci. Pulp é polpa. 

É na polpa, na carne musculosa, na importância e substância, na parte carnosa do fruto que está fincado meu mundo das ideias.

O universo que tenho criado e recheado de uma espécie de polpa que mistura o valor humano, a condição do homem, a imposição do trabalho, a brutalidade, as limitações, a resignação e as possibilidades várias de investigação da alma.

Ana Paula escreveu "entre rinhas de cachorros e porcos abatidos".

Trechos do livro no site:

LABIRINTO

Minha inspiração só surge quando estou mergulhada em tua boca, me lambuzando dos mais impuros desejos. Quando estou sozinha em minha cama e me pego pensando em tudo o que fizemos há algumas horas atrás... onde o suor escorria em nós pela intensa loucura de nossos corpos grudados e transformados num só...


Essa inspiração que me invade vem de ti, que penetra em minha alma sem pedir licença e inunda minha pele de fantasia e lascívia, onde me perco sem querer me encontrar.
Daniela Binato
COCA-COAL, GELADEIRA E INCOMPETÊNCIA BRASILEIRA

Mantenho minha posição: um país que não produz seu refrigerante é incompetente.

Uma nação incapaz de produzir seus próprios carros é tupiniquim.

Ainda ninguém me convenceu: como é que um país não consegue produzir as suas próprias geladeiras, a sua pasta-de-dente, os seus refrigerantes e por aí afora?

Fiquemos com o exemplo das geladeiras.

O Brasil tem marcas nacionais, mas as multinacionais mandam no mercado e, segundo dizem os consumidores, oferecem produtos superiores.

Eu fico me perguntando, entre uma página de Flaubert e uma sonata de Beethoven, qual pode ser a tecnologia tão sofisticada necessária para fabricar uma geladeira superior?

Andei examinando a geladeira lá de casa.

A empregada até estranhou, pois nunca tinha me visto na cozinha.

Fiquei com a impressão de que uma geladeira só ganha em complexidade de um prendedor de roupas.

Nunca vi um aparelho tão simples. Não passa de um caixão de metal que produz gelo e ronrona enquanto a gente dorme.

Então como é que o Brasil não consegue inundar o mercado com as suas próprias geladeiras?

Um especialista me explicou que não conseguimos o mesmo design.

Outro, jurou que não logramos ser competitivos.

Continuo perplexo: o que pode ser necessário para fazer geladeiras baratas e eficientes?

Não estou falando de ideologia, mas de competência mesmo.

Tomei uma Coca-Coca.

É um líquido de gosto indefinido e cor duvidosa.

Fiquei lavando a boca com aquele xarope e pensando: como pode um país não ser capaz de produzir o seu próprio refrigerante? Escovei os dentes e, com a pasta na boca, tive a sensação de se tratar de uma coisa banal.

O que nos falta para produzir uma geladeira que dispense todas as estrangeiras? Cada país minimamente desenvolvido deveria ser auto-suficiente em geladeiras. Ao menos. E em cerveja, palitos, sorvetes e cuecas.

Na época, falei com Antônio Carlos Baldi, que me dava carona depois do Guerrilheiros da Notícia. Após repassar o argumento da tecnologia e do preço, com sua franqueza admirável, sugeriu que o decisivo é o “poder das marcas”.

Torci a informação: somos patos da publicidade. Compramos a marca, não o produto.

Adquirimos por fé na propaganda e na qualidade com selo vindo de fora.

E eu que tinha o homem por racional!

Continuo com a tese: país incapaz de produzir todas as suas geladeiras não merece ter lugar permanente no Conselho de Segurança da ONU. Nem um Prêmio Nobel de Literatura.

É uma questão de clima e de civilização: pelo jeito, um país tropical nunca será capaz de produzir geladeiras de primeiro mundo. Muito menos carros que cumpram a mera função de rodar direitinho.

Somos muito incompetentes.

Precisamos importar até marca de pizza.

A culpa de tudo é dos publicitários.

Afinal, são eles que nos convencem de coisas bizarras como esta: com uma boa pizza, nada melhor do que uma coca-cola.

Tenho passado horas na cozinha observando nossa geladeira.

Ela não me chama a atenção em nada.

Lembra vagamente o Faustão depois da operação para reduzir o estômago,

Ainda vou decifrar o mistério da geladeira.

Se eu conseguir, o Brasil dará um salto para o futuro.

Mais fácil Luiz Inácio enrolar o Irã do que o Brasil se tornar autossificiente em geladeiras.

Esse é o nosso problema.

Eu avisei!

Juremir Machado da Silva
                                           AS VELHAS NOITES DE SEXTA


Havia um bar bem ao lado do Teatro Presidente, teatro que, aliás, também havia, não há mais, foi-se o teatro, foi-se o bar, muito se foi naquela região da cidade. Edelweiss chamava-se o bar, nome de uma flor e de uma música da Noviça Rebelde.
Bem.

Todas as sextas-feiras íamos ao Edelweiss. Não precisava marcar, era certo: sexta, a partir da última esquina das 11, Edelweiss.



O pedido não variava: uma pizza à xadrez que o dono do bar, o Tio Beto, fazia na manteiga, ficava crocante e macia, e não grudava no fundo da forma, uma delícia. E cerveja, claro.

Lembro que um dia cheguei por volta da meia-noite, cansado, sedento, precisando tirar a poeira da garganta, como diria o Tex Willer, e o Tio Beto fez aterrissar aquela garrafa branquinha de tão gelada na minha frente, declarando: — Esta é melhor maneira de dizer boa noite a um amigo.

Lágrimas de emoção subiram-me aos olhos.

O Chico Trago levava o violão para o Edelweiss e cantávamos madrugada adentro. Mão, violão, canção, estrada e viola enluaradaaaaa…

O pessoal do Taranatiriça também ia tocar lá, e às vezes juntávamos as mesas.

Na hora de ir embora, abríamos a porta da rua e, Cristo!, a luz do sol nos cegava por instantes. Como a luz do sol é deprimente no fim da festa.

De qualquer maneira, era um belo bar, o Edelweiss, desses que não há mais na cidade.

Uma noite, cheguei antes da turma, sentei-me, eu com minha cerveja, e vi três moças que ainda não conhecia, na mesa ali adiante. Estavam entretidas numa conversa audível, não tive como não prestar atenção.

Mas não lembro de nenhum dos assuntos que tratavam, lembro apenas de uma única frase dita pela mais magrinha, a mais sequinha, a mais murchinha, quando a mais exuberante delas levantou-se para ir ao banheiro.

Tratava-se, a exuberante, de uma morena magra, porém curvilínea, de cabelo reluzente e olhos d’água. Deslizou cheia de graça para o extremo sul do bar, enquanto as duas amigas a observavam.

Aí a tal magrinha, a sequinha, a murchinha falou para a outra, num suspiro: — Queria saber como é ser bonita como ela…

Foi como se me tivessem sacudido na cadeira.

A singeleza triste da observação me enterneceu.

Ela dizia, a murchinha, que queria saber como é ser bonita. Ou seja: sabia que não era. Que nunca seria. Mas desejava experimentar a sensação de ser. Sua vida de feia de nascença decerto ensinara-lhe que, ao contrário do que a literatura e o cinema pregam com tanta generosidade, a beleza faz, sim, diferença. Mais: que alguns simplesmente vêm ao mundo privilegiados. São mais belos, mais inteligentes, mais ricos, têm mais sorte, e isso não significa que sejam menos bondosos, menos decentes, menos dignos.


O que a murchinha certamente sabia é que o mundo não é justo. Às vezes é até cruel. Cabe ao ser humano atenuar essas injustiças, corrigir as distorções da Natureza e dar mais a quem tem menos. Se a vida é torta, o homem tem de lutar pela retidão.

Portanto, nada deste injusto e desigual campeonato de pontos corridos.

Em nome da justiça e da suspirante murchinha do Edelweiss, que o campeonato volte a ter uma final.


Texto extraído do blog do David Coimbra
A MULHER DO GREGÓRIO

Quando, certa manhã, acordou de intranqüilos sonhos, Gregório Santos viu-se, no seu leito, deitado ao lado de uma imensa gorda. Era a sua mulher. Ficou chocado.

Não lembrava do instante em que se desencadeara aquela metamorfose. Não percebera que vinha ocorrendo. Recordava, isso sim, de como sua mulher era ao se conhecerem. Não que fosse magricela, não. Mas, pô!, estava tudo em cima, lá. Grande onde tinha de ser grande.








Redondinha onde tinha de ser redondinha. Substanciosa, sim. Opulenta, talvez. Gorda, jamais.

Agora, tremia ante àquela… coisa… ocupando dois terços da cama — bolotas de sebo pendendo dos braços e dos culotes. Um pára-choque de banha protegendo a cintura. Três queixos.

Sua mulher. Uma gorda.

Gregório refletiu. Vieram-lhe à mente os jantares que deu para articular sua candidatura à presidência do clube. Durante dois anos, convidou conselheiros para reuniões noturnas em sua casa. Todos compareciam, mesmo os de outras facções. Ninguém perderia as iguarias feitas por sua mulher.

Os bobós de camarão. As bacalhoadas à Gomes de Sá. As rabadas de ovelha com feijão mexido. Os hors-d`oeuvres. Os licores que ela mesma aprontava com suas mãozinhas de fada. As sobremesas, as sobremesas, aaah…

Gregório Santos elegeu-se presidente do clube graças aos manjares celestiais preparados por sua mulher. Só que ela também comia.

Não apenas durante o jantar, em silêncio, ouvindo as articulações tramadas por ele. Também antes, enquanto besuntava acepipes, recheava petiscos, engrossava cremes, flambava guloseimas. De tudo, provava um naco, uma colherada, uma rapa, e suspirava, e estalava a língua, e fechava os olhos, e provava mais um pouquinho, um tantinho só, um nadinha, e outro, e outro, e mais outro.

Assim, engordou lenta e inexoravelmente. Do que Gregório só se dera conta na tal manhã de dor. A partir daí, a vida dele mudou. Sentia-se traído. Casara com uma uvinha, e agora, ao chegar em casa, encontrava uma jaca. Pior: sentia vergonha dela. Depois da descoberta daquela manhã, nunca mais a levara ao bar onde sempre se reunia com os amigos e os dirigentes do clube.

Separaram-se. Gregório Santos passou a namorar a secretária — loira, vinte aninhos, saltitante, matinal. A mulher de Gregório ficou duas semanas trancada em casa, chorando. Passado esse período, que fazer?, ela procurou emprego, foi tratar da vida.

Semanas. Meses. Numa noite azul de sexta, Gregório levou ao bar os empresários de uma multinacional que propunha formar parceria com o clube. Jantavam, tranqüilos, quando ele percebeu que o mais jovem dos empresários esticava um olhar fervente de lascívia para a mesa ao lado.

Gregório virou a cabeça para ver quem era a tal, certamente uma das apetitosas do ambiente, e, Jesus!, era ela! Sua mulher! Sem que ele percebesse, sua mulher havia se transformado numa… numa gostosa! Estava lá, de minissaia, pernas cruzadas, os bicos dos seios quase rompendo a blusa fina, bronzeada como uma primeira-dama, sorrindo para o maldito empresário!

— O-oi — gaguejou Gregório.

Só então ela o encarou.

— És tu, Grégor! Nem tinha te visto… — Fazida! E que negócio era aquele de Grégor?

Os empresários, cutucando Gregório:

— Conhece? Conhece?

Conhecia, sim. Teve de chamá-la para a mesa. Ela sentou-se, cheia de frufrus com os empresários, grudou-lhes beijinhos nas faces. Entre um chope e outro, esbofeteando-o com uma felicidade ofensiva, falou de personal trainers, de dieta de proteínas, e mal dava atenção a Gregório, só olhava para os empresários, só ria para eles.

A alma de Gregório havia se embolado toda numa ponta do intestino grosso. Não contou para os empresários que eles assediavam sua ex-mulher. Ela também não. Ela sequer olhou para ele. Depois de uma hora de aflição, Gregório sentia-se uma barata. Levantou-se, tonto, e foi ao banheiro, lavar o rosto. Ao voltar, ela não estava mais lá. Nem o mais jovem dos empresários.

— Onde foram? — perguntou ao mais velho. Que respondeu com um riso malicioso:

— O safado foi matar aquela bolona!

Gregório tomou o maior pileque da sua vida. No dia seguinte, foi acordado pelo tefonema do desgranido que saíra com sua mulher:

— A parceria está feita! — exultou o empresário, antes de dizer alô. — Depois dessa noitada, a parceria está feita!

O clube saíra ganhando. Mas a cornice retroativa transformou Gregório num inseto. A todo momento, um de seus amigos ou colegas de diretoria comentava a forma física exemplar de sua mulher, como ela estava bonita, como tinha mudado. No dia em que lhe contaram que ela fora vista no shopping com o craque do time, o Renatinho, Gregório Santos disse o seguinte:

— Aaaaaaaaaaaaaaaaaah! — um grito tão dolorido e tão primal e tão alto que foi ouvido no estádio do clube rival.

Gregório saiu correndo a pé mesmo, chegou à casa dela, arf, arf, só pulmão e língua, abriu a porta num pontapé, agarrou-se aos tornozelos lisos dela e implorou:

— Me perdoa! Me perdoa!

Ela perdoou. Voltaram. E se passaram os meses. Anos. Gregório estava feliz com sua vida caseira, serena, igual. Sua mulher continuava cozinhando bem. O parceiro do clube era outra multinacional. O time conquistara o campeonato.

Renatinho havia sido vendido para o futebol bósnio. Tudo estava certo. Mas uma manhã, ele acordou de sonhos intranqüilos. Olhou nervoso para o lado, para a sua mulher. Então viu, sob o lençol, um volume imenso, redondo. Gritou, como um dia havia gritado:

— Aaaaaaaaaaaaaaaaaah!

Sua mulher acordou sobressaltada e jogou o travesseiro longe. O travesseiro que estava sobre o ventre dela. O travesseiro, ela sempre dormia agarrada ao travesseiro! Continuava linda. Não exatamente magricela, mas, bem, opulenta.

Gregório nem respondeu quando ela perguntou o que houvera. Apenas virou de lado. Suspirou. E sorriu.

Texto extraído do blog do David Coimbra
Como havia prometido, vou reativar a correspondência com Valéria V.

Aí vai o email desta semana. Digam o que acharam, se devo continuar a publicar os relatos dela, ou se são muito picantes para esse blog de família.



Aí vai:

“Olá, garoto.

Há quanto tempo, ahn? Anos. Bem, meu caro, as coisas não mudaram. Estou um pouco mais experiente, apenas isso. E, acredite, melhor fisicamente falando. Sempre atraí os homens, você sabe disso, garoto. Mas agora… Bem, agora estou levando a academia realmente a sério. Minhas carnes estão duras, garoto. Rijas. Vou lhe dizer uma coisa muito séria sobre a minha própria bunda: tenho orgulho dela como jamais tive. Redonda, tesa, firme como as convicções do PSOL. Percebo que os homens ficam olhando para ela. Aí abuso. Visto calças justas, garoto. Justíssimas. E os homens enlouquecem. Posso ver como se excitam só de me olhar.


É isso, garoto: estou gostosa como nunca. Essa é a verdade. E tenho me aproveitado disso. Tenho torturado os homens. Descobri que gosto de torturá-los. Gosto de vê-los sofrer. E é o que quero lhe contar agora. Sabe o que fiz com um de vocês? Vou dizer: ele é meu colega de trabalho. Passa os dias me assediando. A todo momento dá um jeito de me tocar, de encostar em mim, roçar-se. Um dia eu disse para ele:

- Você é louco para transar comigo. Pois bem: hoje nós vamos transar. Só hoje. E nunca mais. Uma única noite e nada mais. Você entendeu?

Ele topou. Levei-o para casa e nós transamos, garoto. Fiz misérias com aquele homem. De manhã, mandei-o para casa. E, depois, nem mesmo olhei na cara dele. Cortei de vez a intimidade entre nós, deixei de atender aos telefonemas dele, ignorei-o como se ele fosse um desconhecido. Depois de um mês, ele se ajoelhou diante de mim, chorando.


- Não aguento mais, Val! - ele soluçava. - Não aguento mais!

Desvencilhei-me dele. Antes de ir embora, disse-lhe:

- Eu avisei. Você já teve a sua noite. Contente-se com ela.


E fui embora.


Não sou má?

Beijos.

VV”

Texto extraído do blog do David Coimbra
 A PESSOA ERRADA

Pensando bem, em tudo o que a gente vê, e vivencia, e ouve e pensa, não existe uma pessoa certa pra gente.Existe uma pessoa que, se você for parar pra pensar é, na verdade, a pessoa errada.

Porque a pessoa certa faz tudo certinho. Chega na hora certa, Fala as coisas certas, Faz as coisas certas, Mas nem sempre a gente está precisando das coisas certas. Aí é a hora de procurar a pessoa errada.

A pessoa errada te faz perder a cabeça.Fazer loucuras.Perder a hora.Morrer de amor.

A pessoa errada vai ficar um dia sem te procurar.Que é pra na hora que vocês se encontrarem a entrega ser muito mais verdadeira.A pessoa errada é na verdade, aquilo que a gente chama de pessoa certa.Essa pessoa vai te fazer chorar, mas uma hora depois vai estar enxugando suas lágrimas.Essa pessoa vai tirar seu sono,mas vai te dar em troca uma noite de amor inesquecível.Essa pessoa talvez te magoe, e depois te enche de mimos pedindo seu perdão.
(...)

Luis Fernando Veríssimo
APALPARAM AS COSTAS DA BEL



1° CAPÍTULO

Quando apagou-se a luz e o elevador parou, Bel sentiu o toque daquela mão em suas costas.


Não se tratava de toque casual, não podia ser acidente, engano causado pela escuridão.

Não.

Era uma mão resoluta que a afagava. Uma mão que sabia o que fazia.

Apalpou-a, a mão macia e firme, doce e decidida, a mão cheia de longos dedos apalpou-a dos alicerces da coluna até o terraço da nuca, e o fez numa escalada vertiginosa, espalmada, os dedos bem abertos, quase sôfregos.

Apalpou-a com vontade de a apalpar.

A princípio, Bel assustou-se com o toque, suas costas ficaram em côncavo, seu peito ficou em convexo, sua boca ficou em círculo, de sua garganta quase pulou um ó, mas o ó não pulou, dissolveu-se nas papilas gustativas do fundo da língua, Bel se conteve, parou, esperou e… gostou.

Era bom sentir o toque daquela mão em suas costas. Bom… Tanto que queria mais. Ali, sob uma colcha de escuridão, teve vontade de pedir: “Me apalpa… Me apalpa…” Mas não pediu. O freio milenar da Civilização a impediu.

Restou a dúvida: de quem seria aquela mão?


2° CAPÍTULO 

Bel usava um vestido de verão aberto na parte de trás. Sabia que suas costas eram atraentes. Sabia-se ela inteira atraente.

Loira, lábios de gomo de bergamota poncã, o corpo moldado por três dias de natação por semana, Bel podia arruinar um homem, se quisesse. Até arruinou um, certa vez: André, um advogado que perdeu tudo por ela, tudo!, mas que ainda hoje lhe lamberia as solas dos escarpins, se Bel pedisse.


André também estava no elevador quando a energia faltou, e sofria. A razão do sofrimento?

Bel.

Pudera: Bel bebia o capitoso licor dos 27 anos de idade. Era ainda jovem e, por jovem, seu corpo possuía carnes tenras e frescas como as manhãs de primavera nos altos dos Alpes. Admirá-la era como admirar uma felina se espreguiçando, era provar um pedaço da natureza indomada, era mastigar um naco sumarento da fruta mais açucarada. Ao mesmo tempo, havia lucidez naquela beleza. Bel já acumulara a experiência de uma mulher que sabe o que fazer, como fazer e, sobretudo, com quem fazer. Sim, Bel sabia avaliar um homem, sabia quando ele poderia satisfazê-la em seus desejos mais recônditos.

Ou quando não passava de uma fraude.

Por ironia, Bel atravessava uma fase de indecisão a respeito do seu próprio marido, o supervisor Noel. Será que Noel a merecia?

Será que ela não devia ceder aos seus impulsos, que eram tantos? A seus quereres, tão pulsantes? Será que Noel não passava de uma fraude bem-enjambrada?

Bem-enjambrada, sim, poder-se-ia dizer isso do supervisor Noel, porque ele era um homem desejado pelas mulheres. Não apenas por ser moreno, alto e ter porte atlético, mas porque jamais se intimidava diante de uma fêmea da espécie. Quando queria uma, sempre (sempre!) tentava conquistá-la.

Noel vivia para as mulheres, essa a realidade. No exato instante em que avistava uma mulher pela primeira vez, podia ser diante da gôndola de repolhos do supermercado, sobre a franja do meio-fio da calçada, numa curva da fila do banco ou entre os goles vodka com Red Bull de uma festa, não interessava onde nem como, naquele mesmo segundo, Noel cogitava: essa eu levaria para a cama? Ou não levaria?

Se a resposta fosse “sim”, a mente treinada de Noel começava a trabalhar no sentido de avaliar suas chances de colocar o projeto (levá-la para a cama) em prática. Ela parecia minimamente interessada? Havia possibilidade de abordá-la? Se houvesse, qual a melhor estratégia a empregar?

A partir de então, Noel tentava. E às vezes, muitas vezes, conseguia.

Quando a escuridão se fez no claustrofóbico espaço do elevador, o supervisor Noel dava sequência a mais um de seus planos, este um pouco menos sofisticado do que os de costume. Estava bem à frente de Bel. Logo, dificilmente seria ele o dono da mão que a acariciara nas sombras. Na verdade, no exato segundo em que a energia faltou, o supervisor Noel nem sequer pensava nas costas lisas de sua mulher Bel.

Pensava era na bunda de Bruna.


3° CAPÍTULO

Bruna também trabalhava no escritório, e tinha o hábito de levar a bunda junto para todo lugar que fosse.

Noel ficava sentado atrás da sua mesa de supervisor, bem no centro geográfico do escritório, e passava o dia inteiro esforçando-se para manter no rosto um ar de supervisor.

Não era fácil. Não com Bruna por perto.


Porque um supervisor supervisiona. Logo, tem de ter certa autoridade sobre os supervisionados. Logo, tem de ser sério. Mas, durante o expediente, o supervisor Noel volta e meia erguia a cabeça de seus papéis de supervisor e via Bruna ondulando em sua direção e sabia que ela traria aquela bunda com ela.

Era o que acontecia, invariavelmente. Bruna passava com sua bunda bem redonda e bem grande e bem arrebitada e bem dura, uma bunda tão dura, mas tão dura que Noel suspeitava poder quebrar um dedo, se lhe pespegasse uma palmada na curva do glúteo. Noel não conseguia não olhar para aquela bunda balouçante, não conseguia não pensar naquela superbunda, e aí não havia seriedade que se sustentasse. O desejo pela bunda de Bruna tomava conta da alma de Noel e em seu rosto desfazia-se o ar sisudo que todo supervisor deve ter.

E agora, justamente agora que a luz apagou, aquela bunda se lhe oferecia. Bruna estava paradinha em frente a Noel, precisamente em frente. Diante dela, a dez centímetros da ponta de seu nariz empinado, havia a barreira da porta fechada do elevador. Atrás dela, a cinco centímetros de sua bunda de bola de couro número 5, os dedos sequiosos de Noel estremeciam ante a gana quase irresistível de boliná-la.

O desejo de afagar um gomo da bunda de Bruna foi a segunda sensação que Noel teve depois que a luz apagou. A primeira foi a surpresa motivada pela escuridão, que o fez emitir um oh, enquanto um homem disse epa, outro falou opa, uma mulher gemeu meu Deus, outra deixou escapar um aiai. Feitas as exclamações e instaurado um silêncio constrangido, Noel pensou, com os dentes rilhados e o coração galopante: vou beliscar a bunda dessa Bruna!

Vou aproveitar que a luz apagou e vou fazer isso agora mesmo, vou torcer um naco deste bundão, deste rabo imenso, desta obra abençoada do Senhor, porque, em sua inesgotável sabedoria, o Senhor fez essa bunda para isso, para ser tocada, alisada, aproveitada, beliscada! Beliscá-la é tecer louvores à obra do Todo-Poderoso, é um ato de devoção, é uma prece ao Criador.

Em nome de Deus, vou beliscar! Vou! Vou!!!

E aproximou a mão mais um centímetro das carnes musculosas da bunda de Bruna.


4° CAPÍTULO

Bruna nem sequer desconfiava dos riscos pelos quais sua bunda passava, mas, por coincidência, era nela que pensava.

Na bunda.

Não aguentava mais constatar que sua bunda crescia a cada dia. De manhã cedo, ao mirar-se de perfil no espelho grande do banheiro, notava que a retaguarda ganhara reforço. O que acontecia à noite? Será que as bundas crescem durante o sono? Decidiu que não ia mais comer o mil-folhas do bar do escritório. Nunca mais! Ou, talvez, um mil-folhas a cada 15 dias… Não. Um por semana. Às sextas. Isso. Afinal, a sexta já é fim de semana.

Maldito mil-folhas aumentador de bundas. Ao mesmo tempo… Bruna tinha de admitir: gostava de ter uma grande e redonda bunda, gostava de saber que os homens a admiravam, só lamentava que não se concentrassem mais nela, na bunda, durante o… oh, era-lhe penoso admitir até para si mesma… sim, era difícil pensar que gostava daquilo… durante o… durante o amor. Bruna corava ao pensar em como gostaria de ter sua bunda alisada e apalpada e possuída em meio ao… ao… ato…

Enquanto isso, a mão de Noel aproximou-se mais um centímetro. Ele chegou a sentir nos artelhos as emissões de calor vindas da bunda gigante de Bruna.

Ia beliscar. Ia! Ah, ia!

Ia?

Não sabia se ia.

Noel ficou em dúvida. Reteve a mão.

Porque cogitou: e se ela não gostasse? E se gritasse? Seria um escândalo. Até porque sua mulher Bel estava ali atrás. Uma maldição trabalhar no mesmo local que a mulher. Um suplício. Pois, para Bel, o supervisor Noel era sempre suspeito de infidelidade. Não por causa de Bruna e sua bunda de aço. Por causa de outra überbunda.

A de Joana.

5° CAPÍTULO

Joana era uma ex-gorda. Essa informação diz muito a respeito de uma mulher. Quando entrou no escritório, Joana tratava-se apenas de uma gordinha com rosto bonito, como tantas outras gordas de rosto bonito que rolam pela cidade.

Só que Joana, ao contrário de todas as outras gordas, foi emagrecendo. Emagrecia a cada dia, fenômeno reparado em primeiro lugar pelo contador Ilson. Todos os dias, quando Joana irrompia no escritório, o contador Ilson deslizava até a mesa do supervisor Noel e sussurrava-lhe no ouvido:

— Essa gorda tá afinando…

Noel começou a prestar a atenção na gorda. Primeiro lançava-lhe olhares divertidos, mas, com o passar das semanas, a coisa foi ficando séria. Até o dia em que ela afinou em definitivo. Foram meses de academia e regime, meses de suores e privações, para que, uma manhã, nos píncaros do verão, Joana despertasse de um sono restaurador, conseguisse se enfiar em um jeans justo que ressaltou suas nádegas de ex-gorda, se olhasse no espelho, virasse de perfil e constatasse:

— Fiquei gostosa!

E então olhou para o teto do quarto como se fosse para o firmamento azul, ergueu as mãos como em uma oração e repetiu, num brado de vitória:

— Fiquei gostosaaaaaaaaa!!!

Neste dia, Joana galvanizou os olhares de todos os homens que passaram perto dela. Um em especial. Um admirador de derrières. Um especialista. O supervisor Noel. No instante em que ela pisou com seu pezinho 36 sobre as colônias de ácaros do carpete do escritório, o olhar ávido de Noel colou nela e não descolou mais.

Hipnotizado por aquela polpuda bunda desenvolvida à base de pizzas, calzones e carboidratos em geral, e moldada por levantamento de pesos diários, Noel tomou uma decisão, e a externou para si mesmo falando baixinho, enquanto ela passava:

— Preciso me perder nas carnes dessa ex-gorda!

Perdeu-se. Mesmo. Passou a assediar a ex-gorda por MSN — por escrito era mais fácil de se soltar. Soltou-se ele, soltou-se ela, soltaram-se ambos como cotovias no verão e, em alguns dias, já trocavam mensagens ardentes, ele prometendo possuí-la feito um tiranossauro-rex adolescente, ela avisando que ia cobrar a promessa. Duas semanas depois, combinaram um encontro esconso no depósito, no horário de almoço.

Assim fizeram.

Enquanto os colegas mastigavam melancólicas almôndegas no refeitório, Noel e Joana esgueiraram-se para a sordidez do depósito, cada qual com sua desculpa. Noel chegou antes, escorou-se numa prateleira e ficou à espreita, sentindo-se um Brad. Joana apareceu cinco minutos depois. Vestia uma saia escocesa. Seus joelhos redondos e seu sorriso malicioso reluziam. Ao vê-la, Noel salivou como um Rotwailler e, como um hotwailler, a atacou. Sem emitir palavra, levantou a saia escocesa e, como ansiava havia dias, imiscuiu-se pelas carnes brancas de Joana.

Foi rápido. Mas foi bom.

Pena que tenha sido com testemunha. Quem? Noel nem desconfiava. Talvez algum almoxarife desocupado, algum estafeta perdido tivesse visto tudo e tudo espalhou pelo escritório. O horário de expediente não se encerrou sem que metade do corpo funcional da empresa tomasse conhecimento até das minúcias melequentas ocorridas no depósito durante o almoço. A outra metade tomou conhecimento no dia seguinte, incluída nesta metade a loira Bel. O casamento entrou em crise, eles quase se separaram, Bel quase intimou Joana, quase pediu demissão.

Quase, quase, quase. Não consumou nada. Engoliu sua raiva como quem mastiga bife de fígado, fez de conta que acreditava nas negativas de Noel e passou a ruminar ideias de vingança. Noel tinha de pagar. E Joana também.

Exatamente por imaginar que Bel ainda alimentava anseios de vingança, Joana refugiara-se no fundo do elevador, mas não tão fundo que não pudesse acessar as costas da mulher do supervisor Noel. Seria ela a alisadora? Se fosse, com que intento alisou?

6° CAPÍTULO



No momento do corte de energia, Joana ruminava dois sentimentos:

Sentimento 1: Um pouco de receio por estar tão próxima da rival.

Sentimento 2: Muito desejo de poder repoltrear-se no espaguete com filé à parmeggiana que sua mãe estava preparando naquele minuto, no etéreo subúrbio da sua infância.

Oh, a massa da mãe, massa feita em casa, que se sente nos molares, não era como essas massas de supermercado, impessoais como um sorriso de recepcionista. Que massa, a massa da mãe, e ainda acompanhada de filé à parmeggiana, Jesus!, que tentação! Mas Joana precisava se conter de qualquer maneira. Conquistara aquela forma física com tanto empenho que não seria um prato fumegante de massa com filé à parmeggiana que a derrotaria. Tinha de ser forte. Tinha de lembrar-se da recompensa que auferia todos os dias: o olhar cobiçoso dos homens. Eles a queriam, como a queriam! O supervisor Noel não resistiu a ela, mesmo sendo casado com a loira Bel, que sempre se achou a Bündchen do escritório. E o contador Ilson! Não passava um único dia sem que ele tentasse assediá-la. Joana percebia como Ilson olhava para sua bunda. Todos os dias ele olhava, todos os dias! Achava, Joana, que o contador Ilson era um obcecado por sua bunda.

Mas não era para a bunda de Joana que o contador Ilson olhava no momento em que a luz apagou. Ilson estava parado a dois palmos e meio de Joana, a sul-sudeste das costas de Bel, a quem, secretamente, desejava como jamais havia desejado uma mulher ou um cachorro ou uma comida ou um emprego ou qualquer outra coisa na vida. Secretamente, sim, porque Bel era mulher de seu amigo Noel. Mas Noel não a amava, Ilson sabia que não. Ou pelo menos supunha, devido a tudo que Noel lhe dizia em particular a respeito do seu casamento. Foi por isso que Ilson incentivou Noel a abordar a ex-gorda Joana. E foi por isso que Ilson contou para Lili o que Noel e Joana fizeram no depósito.

Ilson sabia do encontro de Noel com Joana e sabia que Lili ia derramar a história em todos os cantos do escritório. Lili tinha uma gana incontida de revelar ao mundo os segredos das vidas de seus colegas. Lili era uma espécie de jornalista diletante, uma divulgadora de ocorrências. E, os maledicentes diziam, gostava de fazer festinhas com parceiros de todos os sexos, o que não tinha nada a ver com o fato de ela ser fofoqueira, mas era delicioso de saber.

Lili era morena e alta. Suas pernas eram dois troncos de carne rígida da cor de chocolate ao leite que emocionavam os homens.

Emocionavam mesmo.

Certa feita, Rafael, outro colega de escritório, sentiu lágrimas lhe marejarem os olhos quando, por acidente, roçou o cotovelo áspero nas coxas macias de Lili. Naquele dia, ela vestia um vestido curto e leve como a consciência de uma bandeirante. A mesa em que trabalhava situava-se ao lado da de Rafael. A tarde esvaía-se em ritmo de bolero, nada de empolgante parecia prestes a acontecer, até Lili emitir um gritinho:

- Minha tarraxiiiinha!

- Que tarraxiiiinha? - surpreendeu-se Rafael.

- Do meu brinco - miou Lili, e já foi se abaixando para procurá-la na floresta de pêlos encardidos do carpete, e Rafael agachou-se também, e neste balé de movimentos desencontrados deu-se o que se deu: as coxas nuas de Lili roçaram na ponta do cotovelo de Rafael.

Foi um momento de glória na vida dele, um instante que o inspiraria pelos dias, semanas e meses seguintes na prática do prazer solitário, ele em seu quarto de solteiro, deitado na cama, o coração aos pulos, a mão fremente, a cabeça recordando das coxas de Lili, da sensação de tocar nelas, e imaginando-se a lambê-las e a afagá-las e a tê-las só para si pelo menos durante um par de horas, pois aquela fração de segundo entre as mesas de trabalho, em cima do carpete jamais lavado do escritório, aquele átimo de cotovelo duro contra coxa tenra, aquela fugaz impressão havia sido a ocorrência sexual mais importante da existência de Rafael, um triste virgem.

Pior: um envergonhado virgem, já que tinha 22 anos de vida, 22 anos!, e, pelo que havia apurado, devia ser o único virgem com essa idade respirando sobre os oito milhões e quinhentos mil quilômetros quadrados do território brasileiro. Rafael sofria com a abstinência forçada, mas, depois de encostar nas coxas de Lili, o sexo revestiu-se de outro significado para ele. A percepção da textura da pele de Lili penetrou nos poros do cotovelo de Rafael como se fosse um veneno líquido, e através deles alcançou a corrente sanguínea e por veias e artérias espalhou-se pelo corpo inteiro, inflamando-lhe o coração, embebendo-lhe o tecido do cérebro, possuindo-o como uma moléstia incurável.

Rafael tornou-se ele todo Lili, Lili nos olhos, Lili na língua, Lili no sexo.

Ele era Lili. Lililililili.

E agora eles estavam juntos naquele elevador enguiçado, no escuro, tão próximos, tão íntimos, só que lamentavelmente acompanhados por um pelotão de colegas inconvenientes. O que aqueles intrometidos estavam fazendo ali? Ali? Lililililili…

Rafael decidiu que se aproximaria de Lili. Precisava aproveitar a oportunidade para tocar nela mais uma vez, sentir sua pele quente, seu cheiro de morena-jambo, a força que emanava das duas pilastras de carne que eram suas pernas. Bastava dar um passo. Um passo, e nada mais, e se colocaria a um braço de distância dela. Um passo… Um movimento tão básico, mas tão complexo naquela situação, simplesmente porque não havia espaço para dar-se um passo no interior do elevador.

Os corpos humanos como que se amontoavam naquela caixa exígua, um grudado ao outro, flancos contra flancos, peitos contra costas, coxas coladas em coxas. Qualquer movimento no extremo leste do elevador seria transmitido em ondas musculares de corpo para corpo, e se refletiria no extremo oeste. Quando os colegas de escritório se aglutinaram naquele cubículo estabeleceram uma regra implícita, uma combinação não dita, mas essencial para o convívio social: permaneceriam imóveis, em respeito mútuo, durante os breves segundos que o elevador levaria para descer os andares, chegar à segurança do térreo e abrir suas portas para a liberdade e a amplidão da rua.

Mas isso não aconteceu. O elevador enguiçou, os minutos escorriam pastosos e, agora, o acordo implícito estava prestes a se quebrar. Não existiam mais as condições que o tinham determinado. Os humanos ali aprisionados não deviam ficar ali aprisionados, não deviam manter contato tão próximo e tão promíscuo durante tanto tempo. Estava errado aquilo, e as pessoas intuíam que estava errado. Mantinham-se em silêncio, cada qual com sua dor, mas sentiam que a distância entre a paz e a guerra é, às vezes, uma única ação, e a menor delas, que significasse invasão do espaço alheio, poderia significar a laceração do equilíbrio precário que existia até então.

Esta ação poderia ser o passo de Rafael. Em um segundo, ele teve a percepção de tamanho perigo. Mas no segundo seguinte lembrou-se das coxas de Lili e, desassombrado, avançou.

Avançou!

Rafael esticou a perna por entre os corpos na escuridão, infiltrou o torso em meio a outros torsos, motivando uma série de protestos nem tão surdos assim, de gemidos de indignação, de uis e ais e eis. O que estava acontecendo? Quem se movia naquele lugar tão conflagrado?

Rafael não se abalou, foi, foi, foi!

Aproximou-se de Lili, estava quase lá, parou. Havia um único obstáculo entre ele e ela, um único corpo que o impedia de empalmar os peitos duros de Lili, de acoplar-se em suas coxas cor de canela, misturar-se a ela de uma maneira que nem todos os braços dos homens do escritório seriam capazes de desencaixá-lo. Era um obstáculo e tanto. Se tentasse removê-lo, na certa causaria uma revolução no elevador.

Devia fazer isso? Por que não? Devia, sim. Devia, devia, devia, claro que devia. Devia!

AVANÇOU!!!

7° CAPÍTULO

Rafael tentou passar pelo obstáculo. Movia-se repetindo mentalmente: “Vou me acoplar nela, vou me acoplar nela, é hoje que me acoplo!”

O obstáculo chamava-se André, o advogado que teve a vida arruinada por Bel. André, naquele centésimo de segundo, experimentava o ápice da irritação, não apenas porque o movimento brusco de Rafael agastou a todos no elevador, deslocando-os e espremendo-os uns contra os outros, mas também porque ele, André, vivia uma situação especial: André era um homem apaixonado, e poucos males corroem tão profundamente a alma de um homem quanto a paixão. Um homem apaixonado é um homem doente. André era um homem doente, contaminado por Bel. Ela o havia humilhado, ela o havia transformado em um verme, e o que isso fizera a André?

Fizera-o ainda mais apaixonado.

Sua história era uma história de dor. Uma história que devia ser contada com violinos plangentes ao fundo.

Um dia, André teve uma jovem mulher e duas formosas filhas. Teve também um apartamento de cobertura com piscina no terraço e uma caminhonete importada com TV no painel, teve prestígio por ser executivo da firma, teve subalternos solícitos, teve agentes de viagens agradecidos.

Mas ele perdeu tudo isso.

Por causa de Bel.

Aconteceu que durante semanas André promoveu um assédio furtivo a Bel nos corredores do escritório. Bel não o repudiou. Ao contrário, intumesceu-o de esperanças. Isso pôs André maluco. Uma mulher linda daquelas, casada, seria sua? Era bom demais para crer. Melhor ainda: ela era casada com aquela besta do supervisor Noel, sujeito a quem André desprezava e com quem, de certa forma, rivalizava. André era mais importante do que Noel na empresa, ganhava mais do que ele, tinha um cargo superior, mas Noel trabalhava há mais tempo lá e ocupava um cargo estratégico. Volta e meia, Noel punha-se em seu caminho, atrapalhando, se metendo, falando demais. André o detestava. Conquistar-lhe a mulher teria um sabor especial.

Então, André dedicou-se a Bel, cercou-a, teceu planos para conquistá-la e, em meio a essa campanha, se apaixonou. Decidiu que seria capaz de fazer tudo para tê-la. Dizia isso para Bel, e ela sorria:

— Você é casado… Se não fosse…

E suspirava. Sim, ela exalava suspiros cheios de reticências… Foram esses suspiros que roubaram a sensatez de André. Porque lhe pareceram promessas…

Um dia, desesperado de amor, ele desabafou com sua mulher, confessou que amava outra, pediu a separação. Achava que a mulher ia chorar e se descabelar. Que nada. Ela apenas disse:

— Tá bem.

E acionou um advogado feroz, e tirou-lhe metade do que tinha, e levou-lhe os filhos, e ele sofreu, como sofreu, mas pensava: pelo menos terei o amor da minha vida. Terei Bel. Procurou Bel.

— Estou livre! — anunciou, esfregando as mãos. — Agora podemos viver o nosso amor!

E Bel:

— Ficou louco??? Que amor???

André argumentou que ela havia feito promessas. Bel:

— Que promessas??? Sou uma mulher casada! Me deixa!

Foi como se a vida de André tivesse acabado. Agora, no breu do elevador, André só pensava em Bel. Como, aliás, fazia durante todas as horas e minutos e segundos do seu dia, desde que ela o havia rechaçado. Pensou, André, que a queda de energia era um sinal do Senhor, quase uma ordem celeste para que agisse.

E ele agiu.

8° CAPÍTULO

André esticou o braço para tocar em Bel, mas naquele instante o ombro de Rafael o deslocou. Já bastante irritado por sua paixão frustrada, por estar apertado, por estar vivo, André gritou:

— Ei!

E reagiu.

Empurrou quem o empurrava. Ou, pelo menos, achou que estava empurrando quem o empurrava. Não estava. Empurrou Lili, que, inadvertidamente, empurrou Noel, que empurrou Bruna, que empurrou Noel de volta, que empurrou Joana, que empurrou Ilson, que empurrou André, que mais irritado ficou e vibrou novo golpe no ar, que no ar não parou, mas sim no queixo de Ilson, que grunhiu de dor e xingou Rafael, que nem ligou, estava concentrado em Lili, queria Lili e, como ninguém se via naquele lugar, e ninguém se entendia também, achou que podia enfim ter Lili, fazer com Lili o que sempre quis fazer, ou seja: tudo. Lili. Lili. Lililililililili. Só que Rafael não era o único a sentir os instintos protegidos pelo anonimato da escuridão.

Ninguém via nada, ninguém saberia quem era o autor de qualquer ato.

Estavam todos juntos, eles e suas histórias em comum, certos de que experimentavam um momento único de impunidade garantida, como se fossem todos deputados e vivessem em Brasília. Este sentimento se acentuou com o intenso deslocamento de corpos no elevador, fazendo com que os seres humanos mais se amontoassem, muitos protestassem, alguns até gritassem.

Bel foi atirada para outro quadrante do elevador. Ainda não se reequilibrara por completo, ainda não firmara bem o peso do corpo sobre suas duas pernas macias quando sentiu outra vez aquele toque. O mesmo toque. Indisfarçável. Gentil, mas profundo. Um toque de quem realmente queria tocar.

Que toque…

Que toque…

PENÚLTIMO CAPÍTULO

E então, como todos ali uivavam e gemiam, Bel afrouxou a vigilância de esposa e colega de escritório, a vigilância de uma educação pequeno burguesa, cristã, bem-comportada, e falou o que tinha vontade de falar. Falou baixinho, num mínimo gemido:

— Me apalpa…

Um sussurro, só, mas audível naquele ambiente tão restrito. Todos ouviram, inclusive o supervisor Noel, que se ouriçou, os instintos de macho vibrando com o perigo. Rugiu, ameaçador, sem nem saber para quem rugia:

— Larga a minha mulher!

Minha mulher. Era fundamental frisar a posse, mesmo que não soubesse a quem se dirigia: MINHA mulher. Enquanto falava, Noel virou-se para tentar atacar o suposto rival, e seu movimento brusco fez com que os corpos novamente trocassem de posição no elevador.

— Larga a minha mulher! — repetiu, tentando desferir um tapa no bolinador desgranido, mas acertando em um ombro desconhecido, gerando um ai fino, um ai de moça. Noel se assustou, ao compreender que errara o alvo.

No mesmo instante, André, agora menos irritado e mais decidido a aproveitar-se da situação, tomou com a mão direita um braço, tentando tomar o de Bel. Não era o de Bel, era o de Joana. André sentiu-lhe o cheiro quente de mulher e, mais torcendo que fosse do que tendo certeza de que era Bel, puxou a fêmea para si e murmurou, entre dentes:

— Deliciosa…

E beijou-a na boca. Era mais uma vontade que se realizava.


ÚLTIMO CAPÍTULO


Outra vontade que se derramava alma afora de um dos condenados do elevador enguiçado era a de Lili.

O que Lili queria?

Lili queria bater em quem lhe batera. Pois bateu. Atingiu o supervisor Noel com um soco bem no meio do nariz.

Ele se curvou gemendo e, no movimento, encostou-se em Rafael, que, no afã de acoplar-se em Lili, acoplou-se no supervisor. Encaixou-se em Noel como se fosse um cachorro possuindo uma cadela no cio, e ganiu:

— Acoplei! Gostosa! Acoplei! Gostosa! Acoplei! Acoplei! Acoplei!

Foi quando se romperam em definitivo todos os freios da civilização. Tudo contribuiu para que as normas de convívio social se diluíssem: o confinamento em espaço tão limitado, a proteção da escuridão e sobretudo aquele grito de me apalpa!, me apalpa!, um grito que anunciou o cruzamento do Rubicão da moral, um grito a dar a deixa de que todos ali podiam fazer o que ninguém pode fazer: o que tinham vontade de fazer.

E então a bunda de ferro de Bruna foi alisada, beliscada e, o impensável, mordida. Bruna, ao contrário de tirar a retaguarda do raio de ação do mordedor-beliscador-alisador, empinou-a mais, sorveu o prazer que aquelas mãos, aqueles dentes e aquela língua lhe davam, mas também golpeou com sua bolsa os flancos de alguém, não sabia quem, ela queria era fazer algo a respeito, e fazia: batia. Mas não no mordedor-beliscador-alisador, e sim no supervisor Noel, que naquele instante também apanhava de Lili e era agarrado por Rafael, o virgem, que o acolplara, e, em meio a tudo isso, alguém, ninguém soube quem, gemia:

— Me bate! Me bate!

Já o contador Ilson, ele conseguiu: afagou as costas de Bel, afagou-as com vontade e sofreguidão, prensando-a contra a porta do elevador, impedindo seus movimentos, quase que a possuindo à força, enquanto ela repetia:

— Me apalpa… Me apalpa…

Era demais: havia quatro mãos a apalpar as costas de Bel, quatro mãos que ora se roçavam, dedos sobre dedos; ora entravam em luta, uma tentando afastar a outra; mãos que a princípio disputaram aquelas costas, mas que logo entraram em um acordo implícito e mudo e concordaram em partilhá-la e aproveitaram cada centímetro daquelas costas, prensaram Bel, afofaram Bel, tomaram Bel, e Bel:

— Me apalpa…

Foi então que a energia voltou e, com a energia, a luz e, com a luz, a realidade insossa.

A porta do elevador se abriu. E as testemunhas do lado de fora viram uma cena dantesca: homens e mulheres comportando-se como se tivessem retornado a um tempo sem normas, sem leis, sem roupas e sem moral. Homens e mulheres que, por alguns segundos, deixaram-se possuir por seus desejos, realizaram-nos, fizeram apenas o que tinham vontade de fazer.

E foi horrível.

No momento em que a luz da Civilização incidiu sobre eles, eles compreenderam o que havia acontecido, no que tinham se transformado. Sentiram vergonha, deslizaram silenciosos para o mundo exterior, voltaram para as suas casas. E nunca mais falaram disso.

FIM


Texto extraído do blog do David Coimbra