A CABEÇA

A cabeça, pois era realmente uma cabeça. Uma cabeça de gente, uma cabeça de mulher. Estava ali, no chão, em plena rua, sob o sol, naquela radiosa manhã de domingo.

De quem era? Quem a pusera ali ? Por quê? Ninguém sabia.

Perguntou um homem de terno e gravata que tinha passado e parara junto a rodinha de curiosos: - Já chamaram a policia? Alguém chamô os home?

Respondeu o da bicicleta: - Chamô! Alguém chamô!

Mas, um baixote que morava ali no bairro, um dos mais distantes do centro e, que sabia bem como são essas coisas, observou: - Quando o corpo é inteiro eles já demoram pra aparecer, quem dirá quando é só uma cabeça!

Disse o da bicicleta: - Eles aparecem... até a noite eles aparecem.

O baixote concordou no mesmo tom: - É, até a noite eles aparecem.

Entrou um que também morava no bairro a poucas casas dali naquela mesma rua: - E se não aparecer ninguém que que a gente faz com essa cabeça?

Insistiu o outro preocupado: - Que que a gente faz?

- Não. Deixar essa cabeça ai a gente não pode! De repente vem um caminhão e aí?

Ponderou o da bicicleta acendendo um cigarro: - Ela já tá morta mesmo.

- É, mas... vem um caminhão... e ai vai ser aquela porcalhada toda na rua. Já imaginaram?

Ninguém respondeu. Talvez porque estivessem imaginando aquela porcalhada toda na rua: miolos, ossos, dentes, cabelos.

Disse o baixote: - Bom! Uma coisa eu garanto: botá a mão nesse troço ai eu não boto por nada desse mundo. Se depender de mim essa cabeça vai ficar ai pra o resto da vida. E deu uma cuspida de lado.

Notou preocupado: - A sorte é que ela não ta fedendo.

Disse o gordo: - Em falá nisso, vocês já repararam que gente morta fede mais que bicho morto?

Explicou o de óculos: - Deve ser porque gente é pior que bicho.

Sentenciou o magrinho de barbicha com a bíblia debaixo do braço: - Deus fez tudo certo.

O gordo provocou: - Quer dizer então que isso ai é certo?

O barbicha empinou a barbicha, mas não respondeu.

- Bom, se fosse assim, se deus tivesse feito tudo certo, ele não teria criado o homem.

Disse o barbicha: - É, o homem é mal criação de deus.

O de óculos disse: -  O homem é a maior cagada de deus, isso sim!

Disse o barbicha: - Falar assim é pecado.

Continuou o de óculos: - Deus foi fazendo tudo certo. Ele fez a terra, fez o céu, o mar, as matas, os bichos, até ai ele fez tudo certo, mas a hora que ele chegou ao homem, ele bobeou e deu a maior cagada!

Disse o barbicha: - Deus fez o homem a sua imagem e semelhança.

Disse o de óculos: - Então Deus também é uma cagada.

Disse o barbicha: - Falar assim é pecado, é ofender o santo nome!

Disse o de óculos - Deus uma cagada, o homem uma cagada, a vida uma cagada, tudo uma cagada.

Gritou uma moça acabando de chegar e fazendo o maior espalhafato: - É a Zuleide!

Estranhou a companheira, ruiva de cabelo encaracolado: - Zuleide? que Zuleide?


- A Zuleide lá do salão!


- Que é isso menina, você tá é doida!


- É sim, é a Zuleide! Olha ai, se não é?

A moça curvou-se pra ver melhor.

- Olha aquele rasguinho que a Zuleide tem no beiço.

Disse um homem de terno e gravata: - lábio leporino.

Disse a ruiva: - Boba!

- Aquilo é da faca. A faca que o cara usou pra cortar ela.

Disse um rapaz ajeitando a aba do boné virada pra trás: - Cara? Como você sabe que é um cara?

Perguntou a ruiva: - Ah...mulher ia fazer uma coisa dessas?

Respondeu o rapaz: - Mulher faz coisa muito pior!

- Tão prova.

- Provo.

- Lá perto do sítio onde eu trabalho uma mulher matou o marido com uma machadinha e picou ele numa porção de pedaços e depois ainda jogou pra os porcos.

Comentou a moça: - De certo porque ele não prestava.

Ajuntou a ruiva: - Tem homem mesmo que só serve pra comida de porco.

Revidou o rapaz: - E mulher?  Tem mulher que nem pra comida de corpo serve.

Perguntou o homem de terno: - Já chamaram a televisão?

Disse o gordo: - Pra mim, pra mim isso daí foi chifre.

Perguntou o de terno: - E o carrinho de pipoca ?

Disse o gordo: - Eu sou capaz de apostar um milhão. A mulher estava chifrando o cara e ai ele "splafff". E o gordo fez o gesto de cortar o pescoço.

Disse a ruiva: - Como você pode falar uma coisa dessas sem saber de nada?

Disse o gordo com um sorriso de deboche: - Mas é claro, eu aposto um milhão com quem quiser.

Disse a ruiva: - Você não pode falar... vai vê a mulher era uma inocente.

O gordo olhou pra os outros da turma e perguntou pra todos: - Vocês já viram uma mulher inocente? Inocente? Mulher inocente?

Disse a velhinha ao lado fazendo o sinal da cruz, meio surda, ela acompanha tudo em silêncio sem entender nada do que acontecera e do que tava acontecendo: - A única mulher sem pecado é a Virgem Maria... rogai por nós...

Retrucou o gordo: - Claro! Eu não vou dizer que por causa disso a gente deve cortar o pescoço delas. Não é isso. Se fosse assim não ia nem ter jeito de a gente andar na rua, a gente ia tropeça em cabeças.

Os outros fizeram uma cara de riso. Uma porção de dentes aparecendo alegres nas bocas.

A raiva da ruiva. Ela olha furiosa para o gordo procurando alguma coisa pra dizer. A raiva era tanta que...

- Vão bora! Disse de repente a ruiva olhando o relógio e vendo que estão atrasadas pra missa.

Pegou no braço da outra e foi saindo. Ainda parou e se virou: - É por isso que há tanta violência!

O gordo riu, coçou a barriga.

A ruiva apontou o dedo: - Eu vou dizer uma coisa. Escutem o que eu vou dizer: vocês é que mataram essa mulher!

Disse o rapaz: - Nós?

Disse a ruiva: - Vocês que mataram essa mulher!

Disse o rapaz: - Te manca, dona.

As duas foram num passo apressado descendo a rua.

Disse o rapaz: - Segura a cabeça heim, senão ó... fez o gesto de cortar o pescoço e ria. Os outros riam....

- E o picolezero?

- Que picolezero?

- O picolezero!

- Que picolezero?

- O picolezero!

A cabeça ali. A cabeça pra quem vinha subindo a rua e olhava, a primeira impressão era de uma pessoa que tivesse enterrada no chão só com a cabeça de fora.

- Dá vontade de corre e enche o pé.

Disse o outro: - Dá vontade de dá um balão.

- Ai eu corro lá na frente, mato no peito...

- Ai você passa pra mim...

- Ai você me devolve, eu entro na área, driblo um, driblo dois e gooolllll...gooolll... um golaçoooo....


A cabeça, os curiosos, o mistério, a rua, o bairro, o sol quente, a manhã de domingo passado.

Disse o homem de gravata:- É, a prosa tá boa, mas...



(Luis Vilela)