A GOTA DELIRANTE


Escreveu Raquel de queiros, Moreira campos é um desse que pertence à magra família dos Machados de Assis, Gracilianos, dos Torga, sem acrobacias nem sensacionalismos semânticos, sem recursos a pretensões de quem tenta criar uma língua nova.

Para ele o mármore clássico: a limpidez, a fluidez cristalina da frase. Mestre na arte do conto, sempre nos surpreende com a sua síntese de escrita.

Capaz de resumir toda uma situação dramática em duas frases.

Texto de Teresa Freire


A GOTA DELIRANTE

Ele, o moço, jamais desejara tanto uma fêmea como a mulher do primo (os primos tinham sido criados juntos, ele, o moço, seria um irmão caçula). Aquelas nádegas possantes, divididas pelo maiô, em relevo maior, agressão, quando ela se curvava para apanhar qualquer coisa ou fazia ginástica. Conscientemente provocante? A curiosidade dos homens. O marido (era engenheiro), calmo, apanhava a garrafa de cerveja no isopor à sombra da cadeira de lona. O moço não compreendia essa indiferença, tranquilidade. Mais uma vez, a lembrança do outro, que era professor, colega dela na faculdade. Quase passavam o dia no laboratório de química. Tinham viajado juntos, com mais alguns colegas, para um congresso no sul. Mais de uma semana de ausência. Na volta, a tranquilidade de sempre.

– Tudo bem?

– Foi ótimo! – ela disse ainda desfazendo a mala.

Não, não entendia. Aborrecida o outro e evitava-o.


A agressão das nádegas na praia. O moço, sentado na areia, sentia novamente o calção umedecer-se, molhar-se. Num início de gozo, a gota delirante.

Estava na casa do primo não havia muito tempo. Transferido para a agência bancária, faria o último ano de Direito. No quarto dos fundos, mentalmente levava-a para a sua cama de solteiro ou mesmo para a cama dela. O marido viajara (construía e estradas no Interior). Ela, só e tão próxima, a poucos passos! As coxas portentosas, abauladas, por onde ele insinuara a mão grande, mas branda, macia e inventiva. O supremo bem de poder desnudá-la, tirar-lhe o baby-doll tantas vezes entrevisto e exasperante. Pagaria a penetração com a própria vida, se necessário:

– Pagaria, sim...

Falou alto, e surpreendeu-se. Inútil também a leitura do livro de Direito. Ela estava nas páginas, embaralhava-se, escanchava-se (era bem o termo nas letras. Seria mais fantasia sua, a intimidade de casa, cúmplice? As coxas fortes já apresentavam celulite, o começo de rugas no canto dos olhos, quando ria. Não, não! Tudo se exacerbara quando, de passagem pelo corredor, a porta do banheiro entreaberta, a surpreendera grandemente nua, com aquelas forças todas reunidas de uma só vez. Ela propriamente não se assustou. Apenas deu um gritinho muito feminino, vedando o sexo com as mãos:

– Ai!

O sexo era farto, visto assim de frente e agora para sempre grudado aos seus olhos. Quase chegava a apalpá-lo, senti-lo na mão cheia. Um abismo que lhe dava grandes silêncios, como neste instante na sua cama de solteiro. Revolvia-se, fofando, mudando a posição do travesseiro, insone. Voltou a acender a lâmpada na mesinha de cabeceira. Tentou mais uma vez o livro, que tinha prova daí a dois dias. O sexo, ela toda, se enleava, se escanchava (era bem o termo) entre as letras, o começo, o meio e o fim do capítulo não assimilado. Ela, tão próxima, só no quarto! A porta do banheiro teria sido deixada entreaberta de propósito? Porque não se surpreendera. Soltara apenas o gritinho muito feminino, vedara-se, rindo. Ele, estático, parado, hipnotizado, na porta do banheiro. Depois, ela passaria por ele com aquele olhar rápido, que escorregava pelo chão.

O velho relógio de parede, lá na sala, teve um gemido de ferros e deu duas horas.

Adormeceu.

Despertava para o suplício, como na manhã em que ela achava de atirar sobre o corpo o vestido fino, transparente, meio gasto, a calcinha de rendas visível e desesperadora, ele à sua frente ali no corredor. Mais provocações? Voltava a rir-lhe, de passagem, os olhos no chão. Tinha a consciência de que os olhos dele a trespassavam, acabavam de desnudá-la.

Ao entrar no banheiro, novamente sentia os pêlos da coxa forte e cabeluda grudados pelo sêmen, o quase orgasmo, a gota delirante. Doía até despregá-los, valia-se do sabonete. Insistia a idéia de mudar-se para uma pensão.

Logo mais ela iria para a faculdade no carro. O marido sairia para a sua empresa de construção, deixando o filho no colégio, e ele, o moço, aproveita a carona. A casa praticamente vazia. Apenas a mãe dela, com o seu croché ou as palavras cruzadas, à luz da janela, a empregada e o rádio de pilhas sobre a geladeira.

O marido viajara mais uma vez. A empregada já se recolhera, após a segunda telenovela. A velha, também. Ela despertou o filho adormecido no divã e o encaminhou para a cama no quarto da avó. Na poltrona, apenas ele, o moço. Diminuiu o volume da televisão, quase inaudível. Idéia de que ele viria naquela noite. Os olhos consultavam o corredor. E ela apareceu, na leveza desesperadora do baby-doll. Nada de televisão, somente a imagem na tela. Silêncio. A cadeira dela oscilava branda. A inutilidade da imagem no vídeo. Ela mesma se levantou contra a luz para fechar o aparelho (que coxas, meu Deus!). chegou a pedir silêncio, levando o dedo aos lábios, porque ele fizera rumor ao erguer-se da poltrona:

– Psiu...

Iam pelo corredor. Quis pegá-la decididamente pelo braço. Ela se antecipou, segurando-lhe com energia a mão. Dirigiram-se ao próprio quarto do moço, que teve a necessidade de apanhar a toalha de banho ainda úmida atirada em bolo sobre a cama. Posse desesperada, profunda, a loucura, o sexo confundido com a própria morte.

– Me mate! – ela dizia.

Restou exausto, esvaziado, sugado até a última gota. Talvez ela o esperasse também havia muito. Porque ainda o apertava com força nos braços e ele sentia nas costas moças e largas a ponta de suas unhas esmaltadas.

in: CAMPOS, Moreira. Dizem que os cães vêem coisas. 2a. edição. São Paulo. Maltese, 1993.




Moreira Campos