A MORTE BATE À PORTA

Peça em 1 ato


A ação da peça se passa no quarto de Nat Ackerman, na sua mansão em Kew Gardens.


O quarto é atapetado. Há uma cama de casal e uma enorme penteadeira. A mobília e as cortinas são luxuosas.


Nas paredes, diversos quadros e um barômetro de não muito bom gosto. Música suave enquanto a cortina sobe.


Nat Ackerman (51 anos, calvo, ligeiramente gordo, proprietário de uma confecção) está deitado na cama, acabando de ler o jornal do dia seguinte. Está de roupão e chinelos, e lê à luz de um pequeno abajur preso no espaldar da cama. Ê quase meia-noite. De repente, ouve-se um barulho estranho e Nat se levanta e vai até a janela.


Nat: Que diabo está havendo aí?




Subindo desajeitadamente pela janela, aparece uma sombria figura embuçada.


O intruso usa um capuz negro e uma roupa justa, também negra.


O capuz cobre sua cabeça, mas não seu rosto, o qual aparenta meia-idade e ê branco como gesso. Parece-se um pouco com Nat.


Arfa audivelmente, passa uma perna pelo parapeito e desaba dentro do quarto.


Morte (claro, quem mais podia ser?): Deus do céu, quase quebrei o pescoço!




Nat (de olhos arregalados): Quem é você?


Morte: A Morte.


Nat: Quem?


Morte: A Morte, pô! Escute - posso me sentar? Quase fui para o beleléu. Olhe só como estou tremendo.


Nat: QUEM É VOCÊ?


Morte: A Morte, que diabo! Pode me arranjar um copo d’água?


Nat: Morte? O que você quer dizer com Morte?


Morte: Está cego, rapaz? Não está vendo o capuz preto e a cara branca?


Nat: Estou.


Morte: E hoje é Dia das Bruxas?


Nat: Não.


Morte: Então eu só posso ser a Morte. Posso tomar um copo d’água? Mineral com gás, de preferência.


Nat: Escute, se isto for alguma piada..


Morte: Que piada? Olhe aqui, você não é Nat Ackerman, 57 anos, morador na Pacific Street, 118? Só se eu tiver trocado os endereços. Agüenta aí. (Cata nos bolsos um cartão, lê-o em voz alta. Confere. )


Nat: O que você quer comigo?


Morte: O que eu quero? Que pergunta mais idiota!


Nat: Deve haver um engano. Estou em perfeita saúde.


Morte: Sei, sei. (Olhando em volta.) Bonito lugar, este aqui. Vocês mesmos o decoraram?


Nat: Contratamos uma decoradora, mas nós também ajudamos.


Morte (contemplando um quadro na parede): Adoro crianças de olhos esbugalhados.


Nat: Olhe, ainda não quero morrer.


Morte: Você não quer morrer? Por favor, não comece com isso. Ainda estou zonzo com a subida.


Nat: Qual subida?


Morte: Subi pela calha. Estava tentando fazer uma entrada sensacional. Vi as janelas abertas, você lendo o jornal e achei que valia a pena tentar. Era só subir pela calha e entrar com um certo - você sabe... (Estala os dedos.) Só que, bem no meio do caminho, prendi o pé numa trepadeira, a calha quebrou, fiquei pendurado por um fio e minha capa começou a rasgar. Agora chega de conversa. Vamos embora. Esta noite está terrível.


Nat: Você quebrou minha calha?


Morte: Não, não quebrei. Só a entortei um pouco. Você não ouviu quando eu despenquei lá de cima?


Nat: Estava lendo.


Morte: Devia ser uma leitura muito absorvente. (Pega o jornal que Nat estava lendo.) PIRANHAS FLAGRADAS PUXANDO FUMO. Posso levar isso?


Nat: Ainda não terminei.


Morte: Olhe... Hmmm... Não sei exatamente como lhe dizer, xará...


Nat: Por que não tocou a campainha lá embaixo?


Morte: Podia ter feito isto, mas o que você ia achar? Entrando pela janela, pelo menos fica mais teatral. Sacumé? Você nunca leu Fausto?


Nat: O quê?


Morte: E se você tivesse visitas? Toco a campainha, entro em cena e você está servindo drinques a uma pessoa importante. Com que cara eu fico?


Nat: Olha, meu chapa, já está muito tarde.


Morte: Também acho. Bem, vamos?


Nat: Vamos pra onde?


Morte: Pra Morte. Aquele lugar, sabe, né? As Profundas. Lá onde o Judas perdeu as botas. (Olhando para o próprio joelho.) Puxa, me cortei feio. Era só o que faltava: pegar uma gangrena logo no primeiro dia de trabalho.


Nat: Espere um minuto! Preciso de tempo, ainda não estou pronto!


Morte: Desculpe, mas não dá. Gostaria de ajudar, mas a hora é essa.


Nat: Mas não pode ser! Acabo de fechar um negócio com 500 butiques!
Morte: Qual a diferença, um mísero dinheirinho a mais ou a menos?


Nat: É, vocês não se importam! Devem ter todas as despesas pagas, não é???


Morte: Como é, vamos ou não vamos?


Nat (olhando-o de alto a baixo): Ainda não acredito que você seja a Morte.


Morte: Por que não? Estava esperando quem? Rock Hudson?


Nat: Não, não é isto.


Morte: Desculpe se o desapontei.


Nat: Não se desculpe! Sabe, é que sempre achei que você fosse... um pouco mais alto, sei lá...


Morte: Tenho 1 metro e 60. Está bom para o meu peso.


Nat: Você se parece um pouco comigo...


Morte: E com quem queria que eu me parecesse? Afina!, eu sou a sua Morte!


Nat: Me dê mais algum tempo! Talvez mais um dia!


Morte: Não dá pô.


Nat: Só mais um dia! 24 horas!


Morte: Para que mais um dia? O rádio disse que vai chover amanhã.


Nat: Será que não podíamos entrar num acordo?


Morte: Por exemplo?


Nat: Você joga xadrez?


Morte: Não.


Nat: Mas certa vez eu vi um desenho seu jogando xadrez!


Morte: Não podia ser eu, porque não jogo xadrez. Biriba, sim.


Nat: Você joga biriba?


Morte: Se eu jogo biriba? Sou o rei da biriba!


Nat: Então vou te dizer o que vamos fazer...


Morte: Não venha fazer nenhum trato comigo!


Nat: Vamos jogar biriba. Se você ganhar, eu vou com você agora. Se eu ganhar, você me dá um tempinho - só um dia. Tá fechado?


Morte: E quem tem tempo para jogar biriba?


Nat: Vamos nessa. Se você é assim tão bom..


Morte: Olhe, até que eu gostaria...


Nat: Ora, não seja desmancha-prazeres. Uma meia-hora, no máximo.
Morte: Está bem, mas eu não devia...


Nat: Vou pegar as cartas já, já!
Morte: Mas só um pouquinho, hem? Pelo menos, vai me relaxar.


Nat (trazendo cartas, lápis e bloco): Você vai se arrepender.


Morte: Cale a boca, já estou convencido. Agora dê as cartas e me traga a mineral que eu pedi. Que diabo, um estranho entra em sua casa e você não lhe oferece nada para beliscar!


Nat: Tenho umas batatinhas fritas lá embaixo.


Morte: Batatinhas fritas! E se fosse o Presidente? Também lhe oferecia batatinhas fritas?


Nat: Mas você não é o Presidente.


Morte: Dê, (Nat dá cartas e abre uma trinca.)


Nat: Vamos jogar a um centavo o ponto, para ficar mais interessante?


Morte: Porquê? Não está interessante que chegue?


Nat: Jogo melhor a dinheiro.


Morte: Esta bem, Newt.


Nat: Nat. Nat Ackerman. Não sabe nem meu nome?


Morte: Newt, Nat, que diferença faz? Estou com dor de cabeça.


Nat: Vai pegar a mesa?


Morte: Não.


Nat: Então compre.


Morte (examinando a própria mão): Raios, não tenho nada que preste.


Nat: Como é o negócio lá?


Morte: Que negócio?


Nat: A Morte.


Durante todo o diálogo seguinte, eles compram e descartam.


Morte: É como devia ser? Dorme-se o tempo todo.


Nat: Há alguma coisa depois da vida?


Morte: Ahá, você está guardando os valetes!


Nat: Existe alguma coisa depois da vida? Morte (ausente): Você vai ver.


Nat: Ah, quer dizer que vou ver alguma coisa?


Morte: Bem, acho que eu não devia ter dito a coisa desta maneira. Vamos, compre.


Nat: É difícil arrancar uma resposta de você, hem? Morte: Estou jogando biriba.


Nat: Está bem, então jogue?


Morte: E, enquanto isto estou te dando uma carta depois da outra.


Nat: Não fique olhando o que estou apanhando.


Morte: Não estou olhando. Qual foi a última carta que eu joguei aí?


Nat: O quatro de espadas. Está pronto para bater?


Morte: Quem disse que eu estou pronto para bater? Só perguntei qual tinha sido a última carta!


Nat: E eu só perguntei se havia lá alguma coisa para mim ver!


Morte: Jogue.


Nat: Me diga alguma coisa. Para onde estamos indo?


Morte: Que história é essa de nós? Você é quem vai. Bate com a cabeça no
chão e pronto.


Nat: Não brinque. Dói muito?


Morte: Um segundinho só.


Nat: Incrível! (Suspira.) Depois de um contrato com 500 butiques...


Morte: Ah, finalmente uma canastra!


Nat: Você bateu?


Morte: Não, só fiz uma canastra.


Nat: Então, quem bate sou eu.


Morte: Você está brincando,


Nat: Não. Você perdeu. Vou pegar o morto. Sem trocadilho.


Morte: Merda. E eu achando que você estava guardando os valetes!


Nat: Vamos lá, jogue, enquanto eu examino o morto. Bato com a cabeça no chão, não é isso? Não posso bater com a cabeça no sofá?


Morte: Não. Jogue.


Nat: Porque não?


Morte: Porque não! Pô, deixe-me concentrar!


Nat: Mas por que tem que ser no chão? Por que não no sofá?


Morte: Está bem, vou fazer o possível. Agora, podemos jogar?


Nat: É isso que eu estava dizendo. Você me lembra Moe Leifkowitz. Ele também é teimoso


Morte: Eu lembro Moe Leifkowitz. Essa é boa! Eu, uma das figuras mais aterrorizantes do universo, lhe lembro Moe Leifkowitz! O que ele faz? Forra os vestidos?


Nat: Coitado de você para forrar vestidos como ele. Leifkowitz ganha 80 mil dólares por ano! Enfeites, guarnições, faz de tudo. Mais uma canastra real.


Morte: O que?


Nat: Mais uma canastra. Vou bater. O que você tem?


Morte: Futebol.


Nat: Esta eu ganhei.


Morte: Se você não falasse tanto.
Dão as cartas de novo e continuam o jogo.


Nat: O que você quis dizer há pouco quando disse que este era o seu primeiro trabalho?


Morte: O que você acha?


Nat: Como o que eu acho? Então ninguém morreu antes?


Morte: Claro que morreram. Só que não fui eu quem os levou.


Nat; Então quem foi?


Morte: Outros.


Nat: Então há outros?


Morte: Claro! Cada um vai de um jeito.


Nat: Eu não sabia disto.


Morte: E por que deveria saber? Quem você pensa que ê?


Nat: Que história ê essa? Então não sou nada?


Morte: Não exatamente nada. Você é o proprietário de uma confecção. Por que deveria conhecer os mistérios da eternidade?


Nat: Ah, é? Pois fique sabendo que eu ganho muito dinheiro. Formei meus dois filhos. Um trabalha em publicidade, o outro se casou. Esta casa é minha. Tenho um carro do ano. Minha mulher tem o que quer. Não sei quantas empregadas, casaco de pele, férias, o diabo a quatro. Neste exato momento, está viajando, para visitar a irmã. Eu deveria me reunir a ela semana que vem. Então, pensa que eu sou algum duro?


Morte: Está bem, está bem. Não seja tão sensível.


Nat: Quem é sensível?


Morte: E quem foi que me insultou primeiro?


Nat: Eu te insultei?


Morte: Você não disse que estava desapontado comigo?


Nat: E o que queria que eu fizesse? Que desse uma festa pela sua chegada?


Morte: Não é isso. Refiro-me a mim. Disse que eu era nanico, que era isso e aquilo.


Nat: Eu disse que você se parecia comigo. Estava só pensando em voz alta.


Morte: Está bem, dê logo essas cartas.


Os dois continuam a jogar, enquanto a música diminui e as luzes vão se apagando até a escuridão total. Luzes voltam a se acender aos poucos. Passou-se algum tempo e o jogo acabou. Nat está fazendo as contas.


Nat: Sessenta e oito... 150... Bem, você perdeu.


Morte (olhando desanimado para o baralho): Eu sabia que não devia ter descartado aquele nove. Merda.


Nat: Então, nos vemos amanhã!


Morte: Que história é essa de me ver amanhã?


Nat: Ganhei mais um dia. Agora, deixe-me em paz.


Morte: Você estava falando sério?


Nat: Tratou, está tratado.


Morte: Eu sei, mas...


Nat: Não tem mas, nem meio mas. Ganhei 24 horas. Volte amanhã.


Morte: Eu não sabia que estávamos jogando a valer tempo.


Nat: Pior pra você. Devia ter prestado atenção.


Morte: E o que eu vou fazer pelas próximas 24 horas?


Nat: E o que me importa? O fato é que eu ganhei mais um dia.


Morte: Mas o que vou fazer? Vagabundear pelas ruas?


Nat: Arranje um hotel e vá ao cinema. Tome uma cerveja. Não crie caso.


Morte: Some esses pontos de novo.


Nat: E, além disso, você me deve 28 dólares.


Morte: O quê?


Nat: É isso aí, bicho. Olhe aqui. Leia.


Morte (revirando os bolsos): Só tenho uns trocados. Mas não 28 dólares!


Nat: Aceito cheque.


Morte: Mas não tenho conta em bancos!


Nat (para a platéia): Estão vendo contra quem estou jogando?


Morte: Pode me processar. Como você quer que eu tenha uma conta no
banco?


Nat: Está bem, dê-me o que você tiver e fica por isso mesmo.


Morte: Escute, eu preciso desse dinheiro!


Nat: Pra quê?


Morte: Que pergunta é esta? Você está indo para o Além!


Nat: E daí?


Morte: Isso fica longe pra chuchu!


Nat: E daí?


Morte: E a gasolina? E os pedágios?


Nat: Estamos indo de carro???


Morte: Você vai descobrir. (Agitado.) Olhe aqui. Vou voltar amanhã, e você
tem de me dar a chance de ganhar aquele dinheiro de volta. Se não, estou rigorosamente frito.


Nat: O que você quiser. Mas vamos dobrar a parada, ou nada. Pode ser até que eu ganhe mais uma semana ou mês. E, do jeito que você joga, talvez até alguns anos.


Morte: Enquanto isto, não tenho onde cair morto.


Nat: Até amanhã.


Morte (sendo levado até aporta:) Há um bom hotel por aqui? Que diabo, não tenho dinheiro. Vou ter de dormir no parque. (Pega o jornal.)


Nat: Rua! E me devolva o jornal. (Torna-o de volta.)


Morte (saindo:) Fui um idiota em ter topado aquele jogo. Devia tê-lo pegado e saído.


Nat: E cuidado na hora de descer. O tapete está solto no primeiro degrau!
Nesta deixa, ouve-se um barulho terrível. Nat suspira, vai até a mesinha-de-cabeceira e pega o telefone.


Nat: Alô, Moc? Sou eu. Escute. Não sei se isto foi uma brincadeira de mau gosto, mas a Morte esteve aqui, jogamos um buraquinho... Não, a Morte! Em carne e osso. Ou alguém que estava querendo se fazer passar pela Morte. Mas, seja quem for, Moc, que babaca!


DESCE O PANO


Livro Cuca Fundida