PASSAGEM

As pálpebras começavam a ficar pesadas quando a senhora Sofia Vallender depositou o livro sobre o criado-mudo, apagou a lâmpada de cabeceira e se dispôs a dormir.


No átimo de tempo transcorrido entre a lucidez e a inconsciência ainda tentou remomorar o que acabara de ler, mas foi inútil.

Adormeceu sabendo que como de costume nada recordaria no dia seguinte.

A leitura não lhe causava prazer. Era apenas uma maneira solitária de conviver com a própria solidão.

Anotava em uma caderneta os títulos. Já eram mais de cinqüenta só durante este ano, mas os conteúdos permaneciam nas sombras da memória.

No começo isso a incomodava, mas agora não fazia diferença, seguia lendo.


O rosto emoldurado pelo gris da rinsagem contrai-se levemente, enquanto o olhos se movem rápidos sobre as pálpebras fechadas.


Ao anoitecer caminha desorientada entre túmulos. Nas mãos, pequenos pedaços de granito branco.

De quando em vez para em frente a um deles e deposita uma das pedras.


A mãe penteia suas tranças e ajeita seu vestido enquanto prepara "lotion ritiun" no fogão a lenha.


O irmão recita as catilinárias cobrando-lhe atenção para seu latim jurídico.


No túmulo do pai permanece mais tempo.

Escuta o relato de sua fuga da Rússia para não servir o exército do Tsar. A travessia do atlântico como clandestino em um navio mercante. A ameaça de ser jogado ao mar quando descoberto. E a chegada a Buenos Aires. Por fim a vinda para o Brasil e o trabalho na estrada de ferro de Erebanco.

Deleita-se com o passado quando visualiza a sombra de um menino de calças curtas que acompanhado de um vira-lata circula entre as tumbas como se estivesse a inspecioná-la. Não sabendo bem por que resolve segui-lo.


Engordurou o pão torrado com os restos de manteiga, engoliu-o com alguns goles de leite morno.


Jogou a louça na pia sem disposição para lavá-la.


As fisgadas intermitentes nas pernas causavam-lhe desconforto.


Enquanto limpava a dentadura ouviu o ruído do jornal sendo colocado por debaixo da porta.


Abriu e fechou o guarda-roupa várias vezes antes de resolver o que vestir.


E, ainda com a imagem de suas rugas refletidas no espelho, saiu de casa.

Na fila do banco encontrou uma colega professora primária como ela e juntas recordaram os tempos de magistério. indagaram por amigas em comum e choraram os caraminguados recebidos.

Foi reconhecida por uma ex-aluna, que a cumprimentou, respeitosa. E, em troca, bombardeou-a com perguntas sobre o rumo que a vida tomara.


Bebeu suas respostas dadas em ritmos de despedida.


Ao vê-la se afastar, comentou com a colega: - imagine, tão moça e já casada!.


- As pessoas estão sempre com pressa nos dias de hoje! Resolveu voltar para casa.


Tanto tempo na fila só fizeram aumentar a dor nas pernas.

A primeira página do jornal rasgou quando Sofia tentou abrir a porta do apartamento.


Gemendo, encurvou-se para apanhá-lo.


O barulho forte de sua cabeça batendo contra o solo foi ouvido pela vizinhança.


Agora, o menino de calças curtas caminha mais rápido como se quisesse conduzi-la para algum lugar.


Quando a distância entre os dois aumentou e ela cansada ameaça desistir, o cão rosnando crave os dentes em seus calcanhares obrigando-a a seguir.


Por fim, homem e cão param em frente a um túmulo, o ultimo de uma sucessão deles. Ao lado uma cova aberta.

O vizinho atraído pelo barulho da queda reconheceu-a através da porta entreaberta e deu o alarme.


Logo, curiosos acumularam-se no corredor do edifício.


Alguém lembrou o médico do 22, mas ele não estava em casa.

A solução foi telefonar para o SAMU enquanto aguardavam a chegada da ambulância.
Os comentários insuscetíveis: - coitada da velha sempre sozinha. - tem um filho, mas ele pouco aparece. - filha mulher é sempre mais companheira. Mora muito tempo no prédio mas não conversa com ninguém. - olha a sala, mais parece um museu. - ela revirou os olhos, acho que vai dizer alguma coisa.


A curiosidade supera o temor, e Sofia, contornando o menino de calças curtas, reconhece o estranho personagem que olha com emoção pra a laje onde se lê "Moched Beyacomo Wallember", nascido em 1920, falecido em 1997.

Tem ímpetos de correr em busca da saída, lavar as mãos e fugir, mas o corpo não obedece ao seu comando.


Arremessada, fora dele sente-se flutuar no espaço.


A ansiedade da impotência segue-se o vazio. E ao olhar para baixo, uma sensação de neutralidade.

Os vizinhos assustados rodeiam o seu corpo.


O filho pega a pá e começa a jogar o primeiro punhado de terra.


Leo Trombka