O AMOR E O JOGO DE CANASTRA


Diga rápido: o que o jogo de canastra tem a ver com o amor? Diga, diga. Não sabe? É fácil. Nada.


Jogo de canastra nada tem a ver com o amor. Mas jogar canastra com a pessoa amada é melhor, ah é. Ela anuncia, voz de moranguinho com nata:

— Morzinhoooo, bati — e se debruça sobre as cartas para lhe pespegar uma bicotinha na ponta do nariz.

— Bateu, momosinha? — ele aproveita para dar uma mordiscada no lóbulo da orelha dela. — Que lindo! Que lindo! Momosinha bateuzinho!

Não faça argh. O amor é assim.

Sexo é como jogo de canastra: nada tem a ver com o amor, mas praticá-lo com a pessoa amada é melhor. Desde que se sinta desejo por ela, a pessoa amada, essa. Exato. Porque desejo, sim, tem a ver com sexo. Desejo. Amor não.

Amor é tolerância. Respeito. Intimidade. Conheço muitos homens que continuam amando suas parceiras apesar de não sentirem mais atração sexual por elas.

É como funciona, não se enganem. Não deprecia mulher alguma. Peguemos, por exemplo, a Sharon Stone. E alguma figura pública porto-alegrense. Vejamos, vejamos… o Wianey Carlet.

Ela, a Sharon, pode vir a Porto Alegre um dia. Pode, ora. Sei lá, vem fazer um comercial de sandália. Que seja. Na entrevista coletiva, Sharon debruça os olhos azuis nos cabelos escarlates do Wianey, e se encanta. Que man! Que man!

Evidente está que o exemplo só vale se se pensar em um Wianey solteiro, desimpedido. Pois bem, o Wianey é solteiro e não é bobo, vai lá, besunta a Sharon com o charme dele, discorre sobre os jogadores que jogam sem a bola, sobre os malefícios da Lei Pelé e a conquista. Começam a namorar. Ela volta para os Estados Unidos, mas os dois se correspondem, telefonam.

Chega um dia em que a Sharon não agüenta mais a distância, decide largar tudo e se mudar para o Brasil. Para Porto Alegre. Para a casa do Wianey Carlet. Os primeiros dias são loucos, ferozes. Melequentos. Wianey e Sharon não se largam.

Mas aí vem o Carnaval e o Wianey quer desfilar na Figueirinha. De fato, ele desfila. Sharon fica emburrada em casa, assistindo aos desfiles pela tevê. Quando Wianey volta para casa, ela só fala por monossílabos. Wianey suspira, agastado:

— Que mulher geniosa!

Dias depois, os amigos da Rádio Gaúcha convidam Wianey para jogar futebol. Ele aceita. Liga para Sharon avisando. Ela fica furiosa, xinga-o, chora. Reclama que ele prefere correr atrás de uma bola com um bando de barbados do que ficar com ela. Wianey vai jogar mesmo assim. Mas não consegue se concentrar. Está irritado.

Pronto. É o começo. Em pouco tempo, Wianey já está inventando desculpas para sair com os amigos, volta para casa de madrugada, bêbado, Sharon fica furiosa, não fala com ele dois dias, um saco essa Sharon.

É o fim. O que ligava Wianey a Sharon era o sexo, eles não construíram nada mais sólido, nada que resistisse aos efeitos corrosivos da convivência.

O futebol poderia ajudar as pessoas a compreender essas coisas. No futebol existe o amor com todos os seus ingredientes — respeito, intimidade, tolerância. E o desejo. Mas os dois, desejo e amor, são sabiamente apartados. Nem sempre foi assim. Só é agora, depois da ação didática da realidade.

Reparem no que aconteceu sábado passado e o que está acontecendo neste. Sábado passado, Gamarra veio jogar contra o Inter e a torcida gritou, no Beira-Rio:

— Ado, ado, ado, Gamarra é colorado.

Desconsiderando a rima rasteira, foi uma bonita homenagem ao jogador. Depois, no fim do segundo tempo, Gamarra marcou um gol no Inter. Mas comemorou-o sobriamente, como se estivesse constrangido. Típico caso de amor.

Gamarra está lá, refestelando-se com o Corinthians, mas a torcida colorada sabe que ele precisa fazer isso, que é o melhor para ele. A torcida respeita Gamarra e tolera até aquilo que poderia ser considerado, mas não é, infidelidade — a marcação de um gol contra o Inter.

Já Gamarra, conhecendo intimamente a torcida colorada, conteve-se na comemoração de seu gol. Por respeito.

Hoje a torcida do Grêmio está recebendo Luiz Felipe, Arce e Paulo Nunes, e o sentimento é o mesmo. Os três estão vivendo um affaire pleno de volúpia com o Palmeiras. Selvageria sob os lençóis.

Mas os gremistas sabem que é só um affaire. Sobretudo nos casos de Luiz Felipe e Arce. Paulo Nunes, suspeito que seja demasiado fútil para angariar sob as costelas algo como respeito, tolerância e intimidade; enfim, amor. Porém, é só uma suspeita e, como todas as suspeitas, pode ser injusta.

O importante é que as pessoas conseguem manter relações civilizadas no futebol. Conseguem racionalizar seus sentimentos. Pelo menos nesse estágio.

Hoje a torcida do Grêmio vai olhar para Felipão, Arce e Paulo Nunes, vai lembrar dos momentos felizes que passaram juntos, dos anos dourados, e vai suspirar como a moça que, ao revirar as gavetas, encontra uma fotografia dela e de seu ex-amor dançando, talvez um bolero, ambos felizes, ele parecendo dizer:

— Te amo, Maria.

Então, a torcida do Grêmio, como a moça, vai sentir vontade de ter de novo seus ex-jogadores, pois a moça, como a torcida do Grêmio, quereria ligar para seu antigo amor, provavelmente fizesse confissões na secretária-eletrônica, iria querer beijá-lo outra vez, mas, os antigos amores, a moça sabe, a torcida do Grêmio sabe, seus beijos nunca mais, seus beijos nunca mais.

 David Coímbra