UM PRAZER ANÁRQUICO

Ler, para mim, sempre foi uma atividade anárquica e muito prazerosa. Jamais fui capaz de leituras organizadas, panorâmicas, escafândricas. Minhas fichas de leitura sempre são uma caneta a sublinhar as passagens mais interessantes dos meus livros preferidos.


Detenho-me, no meio de uma leitura, diante de um onomástico, e corro à minha biblioteca a catá-lo. E raramente volto ao ponto em que parei (no mesmo dia, na mesma semana), pois que o segundo livro me levou ao terceiro, e este ao quarto, e aquele ao quinto...


Sei de gente que começa a ler o Balzac e não sossega enquanto não devora, um por um, todos os romances da Comédia Humana. Tenho um aluno de oficina, Jefferson Flach, que leu e releu várias vezes Em busca do tempo perdido. Tive outro que afirmava, com notável seriedade, que lera sem parar o Ulisses, de Joyce! E mais, dizia, sem que ríssemos, que adorara!
Meu prazer pelo fragmentado, pelo aleatório, pelo disperso é tão grande que raramente leio um livro de uma assentada. Prefiro ler trechos aqui, capítulos ali, de obras variadas, de gêneros díspares. Prefiro ler trinta, quarenta livros simultaneamente do que um só.


Quando surgiu a internet, com suas infinitas janelas, me senti realizado. Ali estava um modelo de aproximação ao texto que eu praticava ainda na Biblioteca do Colégio Estadual Cardeal Pacceli, em Três de Maio, na década de 70.

Ah, com que inusitado prazer eu abria as enciclopédias, especialmente a Barsa, e saltitava de verbete em verbete!

(Dos sonhos que tive na adolescência, este talvez tenha sido um dos mais persistentes e irrealizáveis: ter aquele monumento em casa, tomo a tomo. Quando atingi a capacidade econômica de adquiri-la, o projeto editorial se modificou. Os verbetes, que eram longos e consistentes ensaios, passaram a ser tijolinhos informativos. Perdi o interesse. Um dia, um aluno, Guido Kopittke, deu-me de presente uma Barsa completa. Ao abrir o primeiro volume, meu coração disparou. Voltava às minhas mãos uma das edições antigas, com planos de estudos, e verbetes imensos. Às vezes, vou ao meu escritório e torno a fazer a minha leitura preferida – aleatória e não-sistemática).

Será por isso que gosto tanto do conto? Por ser ele capaz de produzir em curto espaço grande epifania?


E nós, professores, que tanto dizemos que nossos alunos não lêem mais nada, não estaremos querendo deles um modelo de leitura que já não são capazes de realizar? E se ao estreitamento cartesiano do método nós lhes oferecêssemos um banquete de múltiplos e simultâneos objetos de leitura?



Impossível não lembrar, aqui, de Daniel Pennac, e seu Como um romance, onde apresenta um fascinante decálogo da leitura. Cito apenas dois mandamentos, o primeiro e o quinto: O direito de não ler e O direito de ler qualquer coisa.

Até Paulo Coelho, eu diria. Até Paulo Coelho.




Chalres Kiefer