CRIS, A FERA
O primeiro homem que matei era um canalha. Estava um pouco bêbada, quando o conheci. Tinha 19 anos, sabia que chamava a atenção pela minha beleza e, acrescento imodestamente, pela minha sensualidade.
Sou morena, tenho um metro e setenta de altura e desde os 14 anos faço algum sucesso devido às formas curvilíneas do meu corpo e ao meu rosto de feições harmônicas.
Minha boca. Sei que os homens adoram minha boca carnuda. Sei que eles querem beijá-la e mordê-la. Imodestamente.
É um momento glorioso, esse em que a mulher descobre o poder que exerce sobre o sexo masculino.
A partir do fim da puberdade, comecei a sentir que aturdia os homens. Primeiro, fiquei encantada com os elogios que recebia.
Deixei-me envolver por alguns garotos mais velhos, acreditei que eles realmente me achavam especial, que me amavam e me adoravam, aquela coisa toda que viria a ouvir quase que semanalmente, nos anos seguintes.
A partir do fim da puberdade, comecei a sentir que aturdia os homens. Primeiro, fiquei encantada com os elogios que recebia.
Deixei-me envolver por alguns garotos mais velhos, acreditei que eles realmente me achavam especial, que me amavam e me adoravam, aquela coisa toda que viria a ouvir quase que semanalmente, nos anos seguintes.
Depois, com a repetição enfadonha das abordagens, das frases de efeito e das carícias masculinas, passei a compreender que os homens são movidos por desejos primários. Ou, antes, por um único desejo primário: a cópula animalesca. Só. Mais: entendi que, por sexo, os homens mais inteligentes tornam-se frágeis e suscetíveis de cometer as maiores burrices.
Quando uma mulher alcança essa compreensão, compreende os homens. E os domina. Se quiser transformar um homem em meu escravo, eu o transformo. Basta que nunca me entregue por completo. Basta que mantenha o clima de mistério. Ele não pode saber tudo de mim, ele não pode ter certezas, nem segurança. Ele pode ter meu corpo, nunca minha alma.
Mas aos 19 anos é claro que não tinha consciência completa disso. Estava aprendendo. Havia terminado o meu primeiro namoro sério e experimentava as emoções da noite porto-alegrense. Cada fim de semana era uma aventura.
Queria ser médica, mas meus pais são pobres, nunca tive dinheiro para pagar cursinho, muito menos para uma faculdade particular. Na época, trabalhava como secretária de um advogado. Ainda morava com meus pais. Naquela sexta-feira, saí com minha amiga de colégio, a Aninha, que era jornalista e trabalhava na Zero Hora.
À meia-noite, sorridentes e lindas dentro de nossas minissaias, entrávamos no Doctor Jekyll. Fincamos nossos cotovelos amaciados por creme Nívea no balcão, e pedimos tequila. Eu e Aninha tínhamos um acordo: sexta-feira era a noite da tequila. Bebemos a primeira dose e logo a segunda e ainda mais rapidamente a terceira.
Dançávamos, uma de frente para a outra, ao som de um bom Eric Clapton, quando dois sujeitos se aproximaram. Um baixinho loiro, que se apresentou como Professor Juninho, e outro grandão, com os cabelos ralos em desalinho, cujo nome não recordo.
Lembro desse Professor Juninho porque ele e Aninha sustentaram um caso durante algum tempo, depois daquela noite de sexta. O grandão ficou uns 15 minutos por ali, balançando-se ao nosso lado, bebendo cerveja, sem falar nada, só me olhando e sorrindo. Desinteressei-me por ele, pedi licença para ir ao banheiro e abandonei o grupo.
Foi à saída do banheiro que encontrei o homem que iria matar. Chamava-se Felipe, era alto, mais de um metro e oitenta e cinco, creio, e falava com voz grave. Ofereceu-me uma tequila. Aceitei. Aceitaria de qualquer um, o que queria era me divertir, talvez dançar um pouquinho e, por que não?, dar uns beijos.
Fiquei bebendo e ouvindo a conversa dele. Não sei mais o que falou, só sei que estava bêbada e que o que ele me dissesse, àquela altura, pareceria-me engraçadíssimo. Convidou-me para ir a outro lugar, alegou que ali estava quente e cheio de gente. De fato, estava quente e cheio de gente. Topei sair com ele. Queria aventura. Queria ver até onde a noite ia me levar. Avisei Aninha de que estava indo embora. Ela, aos beijos com o tal Professor Juninho, mal me ouviu.
Saí para a madrugada mais dramática da minha vida. A madrugada que iria me transformar em assassina.
CAPÍTULO 2°
Eu ria e ria e ria, e ele ria também. Estava tudo meio brumoso, meio difuso, os eflúvios da tequila enuviavam minha cabeça. Rodamos por uns 15 ou 20 minutos, até chegarmos a um prédio de uns seis ou sete andares e grandes sacadas numa rua arborizada da Bela Vista.
— Onde é que nós estamos? — perguntei, enquanto o carro mergulhava no escuro da garagem.
— Vamos tomar uma champanhe no meu apartamento — disse ele, manobrando o volante e sorrindo de lado.
— Hmm… — sorri de volta. — Champanhe…
Não me entusiasmava com a idéia de subir ao apartamento dele, mas não queria parecer uma caipira assustada. Queria mostrar que tinha o controle da situação. Beberia um ou dois copos de champanhe, deixaria que me beijasse uma ou duas vezes, e depois iria embora. Nada de intimidades. Permaneceria vestida, uma monja. Pediria que me levasse em casa. Talvez no dia seguinte, se gostasse do seu comportamento, aceitasse um convite para jantar ou ir ao cinema. Talvez.
Entramos. Até que o apartamento era bem decorado. Fiquei surpresa.
— Não parece apartamento de solteiro — comentei, balançando a cabeça, admirada.
— Já fui casado — respondeu, enquanto manuseava uma garrafa de champanhe que tirara da geladeira da cozinha.
A rolha saltou, ele encheu duas taças pela metade. Brindamos. Ao primeiro gole, ele me tomou pela mão e me puxou até o sofá da sala de estar. Foi meio brusco, mas não me importei. Achei engraçado. Até aquele momento, estava achando tudo engraçado. Sentamos. Cruzei as pernas e minha minissaia subiu. Ajeitei-a recatadamente, embora percebesse que ele havia cravado os olhos nas minhas pernas. As pernas são um dos meus trunfos, bem sei. São compridas e fortes, são macias e lisas.
Em um segundo, ele pousou a mão nas minhas coxas e começou a alisá-las, enquanto me beijava na boca sofregamente, talvez mais sofregamente do que devesse. Enfiou a mão por baixo do meu vestido, chegou à calcinha, estava me sufocando com aquele beijo. Tentei me livrar, puxei a mão dele, empurrei-o para trás. Em vão. A mão dele já estava entre as minhas pernas, tentando enfiar-se em mim. Fiquei angustiada, fiquei realmente nervosa, pedi: — Pára! Pára, por favor!
Ele resfolegava: — Gostosa! Gostosa!
— Pára!!! — insisti.
— Gostosa.
Tentava arrancar minha calcinha. Ele era forte, muito mais forte do que eu. As taças de champanhe já haviam rolado pelo tapete, ele montara sobre mim, me imobilizando, me deixando sem ar. Eu implorava: _ Me larga! Me larga!
A mudança de atitude dele foi rápida demais, não me deu tempo de raciocinar. Em um átimo, havia se transformado num animal, em um ser com o qual seria impossível argumentar, que tinha apenas vontade, apenas instinto. Ao mesmo tempo, ele tinha muita segurança, muita confiança no que fazia. Já devia ter feito aquilo outras vezes. Era evidente que tinha feito.
De alguma forma, conseguiu puxar minha calcinha. Ele sabia o que fazia. Eu não conseguia me mexer. Sentia-me impotente, à mercê dele, sentia-me um bicho. Entendi que ele não ia parar, que nada o impediria. Entendi que ele iria me violentar ali mesmo e que eu não poderia reagir. Decidi gritar. Enchi os pulmões de ar e preparei-me para emitir o maior grito da minha vida.
-—Socor — comecei, e não terminei. — O desgraçado tapou minha boca com sua manopla e me roubou o ar.
Tinha dificuldades para respirar. Tinha dificuldades para me mexer. Dois segundos depois, ele estava em cima de mim, arfando e arremetendo, um monstro, um monstro.
Senti muita dor, mas resolvi ficar quieta, parada, quem sabe assim ele terminasse logo. Não chorei, não reclamei mais. Esperei, só, esperei com uma frieza e um ódio que não sabia poder ter dentro de mim. Aquilo não parava mais. Aquilo era nojento. Esperei, esperei, esperei, e foi como se estivesse morrendo enquanto esperava.
Quando ele terminou, rindo, respirando pesadamente, saiu de cima de mim e jogou-se para o outro lado, as calças arriadas até as canelas, o pescoço apoiado no braço do sofá, a cabeça atirada para trás. Continuou rindo e repetindo: — Foi bom, foi bom… — e ria e repetia: - foi bom…
Até hoje não entendi como, mas, naquele exato instante, eu já sabia o que fazer. Ergui-me com os dentes rilhados, sentindo a força do ódio me inundar. Estendi o braço até um porta-canetas que havia sobre a mesa, um porta-canetas para o qual olhava fixamente enquanto ele me violava, e de lá saquei um estilete. Fiz a lâmina saltar. Ele notou que algo estava acontecendo, mas achava-se tão absorto em seu próprio gozo, tinha tanta confiança na sua força, que não se mexeu.
Girou os olhos, fez menção de levantar a cabeça ou de falar, mas, antes que pudesse fazer ou dizer algo, eu agi: passei-lhe a lâmina no pescoço com toda a força que reuni no meu braço direito, degolei-o como se fosse um porco, e foi como um porco que ele se comportou, grunhindo e gorgolejando e sangrando às catadupas, até cair do sofá e se estrebuchar no tapete da sala, os olhos esbugalhados de pavor, esvaindo-se diante de mim, que o encarava de pé, calma, o estilete na mão, vendo com ódio o meu violador nas vascas da morte, em convulsões, em agonia, até o fim. Até o fim!
CAPÍTULO 3°
Não senti remorso. Não me arrependi. Fiquei observando, enquanto ele agonizava. Permaneci de pé sobre o tapete, tesa, vidrada, o estilete na mão, pingando sangue. Era estranho. Era como se não estivesse ali. Como se viajasse fora do meu corpo, vendo a cena de cima, de longe, uma espectadora, não uma protagonista.
E o mais curioso: não sentia nada. Nem raiva tinha mais. Como podia aquilo? Como podia, em meio a um acontecimento tão traumático, ficar fria daquela forma, quase indiferente?
Quando ele parou de se mexer, quando ficou completamente imóvel, sentei-me na ponta do sofá. Falei alto para mim mesma: — Tenho que pensar. Tenho que pensar, tenho que pensar, tenho que pensar…
Mas não conseguia. Não conseguia pensar, nem sentir. Estava vazia.
Não sei quanto tempo continuei ali, sentada, olhando para a mesa de centro da sala, para o porta-canetas de onde havia tirado o estilete. Então, falei baixinho: — Por que é que esse cara colocou um porta-canetas na mesinha de centro da sala?
E aí, até hoje não acredito, ri. Ri, juro. Sentada ao lado de um cadáver, tendo na mão um estilete manchado de sangue, sendo eu própria a assassina, ainda assim, ri. E, enfim, pus-me a pensar.
E a agir.
Ergui-me. Olhei para o estilete que empunhava. Fechei-o. Limpei o sangue no sofá. Uma heresia, o sofá era de couro legítimo, devia ser caríssimo. Mas, afinal, quem ia se importar com aquele sofá agora? O Mensageiro da Caridade, talvez…
Tomei minha bolsa, que estava atirada numa poltrona, e nela enfiei o estilete. Concluí que fora uma decisão muito sensata. Sumir com a arma do crime iria confundir a polícia. Pensando na polícia, pensei também em impressões digitais. Impressões digitais! As minhas estavam espalhadas por toda parte. Fui até a cozinha, apanhei um pano de pratos e limpei cada pedaço de móvel em que toquei.
Lavei as taças e guardei-as em um armário. Esvaziei a garrafa de champanhe na pia e joguei-a no lixo da área de serviço. Ao voltar para sala, chutei algo macio. Minha calcinha! Imagina se esqueço minha calcinha… Vesti-a.
Usando sempre o pano de prato para evitar deixar impressões digitais, passei a abrir gavetas e armários, a revirar tudo. Queria dar a impressão de que o crápula fora alvo de um assalto. Olhei para ele. Ainda estava com as calças arriadas. Desgraçado! Fui até lá e, com alguma dificuldade, levantei-lhe as calças e as fechei. Deu-me trabalho, aquilo. Era um desgraçado mesmo.
Voltei para os armários e as gavetas. Procurava algo de valor. Não havia nada que pudesse levar, a não ser aparelhos eletrodomésticos e, por favor!, eu não iria sair dali carregando uma televisão.
Finalmente, deparei com um armário trancado à chave. Bom sinal. Mas como arrombá-lo? Pensei, pensei, corri para a cozinha, depois para a área de serviço. Debaixo do tanque, havia uma caixa de ferramentas. Perfeito. Peguei uma chave-de-fenda e, gastando alguns minutos e muito suor, escancarei a portinha do armário.
Tive sorte: na primeira divisão do armário, dentro de um envelope pardo, reluziam um passaporte e maços de dinheiro. Ele devia estar preparando alguma viagem. Saquei o dinheiro do envelope, sofregamente. Arregalei os olhos: era muito dinheiro! Um maço de reais com, talvez, uns mil reais, e vários maços de euros. Vários maços de euros! Vários, vários! Fiquei excitada. Sorri. Acabara de matar um homem, e sorria. Nem eu mesma me conhecia.
Soquei o dinheiro na bolsa. Dei mais uma geral no apartamento. Revirei-o todo, experimentando certo prazer destrutivo. Consultei o relógio: tarde, já. Hora de ir embora. Apanhei de cima do aparador da sala a chave do carro do canalha e o controle remoto da porta da garagem. Ia saindo, e tive uma última idéia. Corri para o quarto e escolhi no roupeiro um casaco com capuz. Com o rosto escondido pelo capuz, para o caso de alguém me ver sair, desci para a garagem, entrei no carro, abri a porta da garagem e fui embora.
Não havia ninguém por perto, ninguém na rua, nada. Maravilha. Dirigi até a Protásio Alves, estacionei o carro numa rua vicinal. Caminhei três quadras até um ponto de táxi que sabia haver ali perto, entrei num carro e pedi para me levar ao Centro. No Centro, caminhei mais duas quadras até o terminal de ônibus.
Embarquei num ônibus para o Menino Deus e cheguei em casa ao amanhecer, exausta, nervosa, confusa.
Tomei um longo banho quente. Enquanto me lavava, chorei. Mas não foi por comiseração, não foi de tristeza. Foi de raiva. Por saber que, a partir daquele dia, minha vida não poderia mais ser a mesma. Que teria de me tornar outra Cris. Teria de me tornar uma fera.
CAPÍTULO 4°
É fácil matar. Um corte no pescoço, zzzip!, e em um segundo um homem de quase um metro e noventa de altura está no chão, estrebuchando, indefeso, vertendo uma cachoeira vermelha pela garganta. Sentia-me poderosa, sabendo que fora capaz de fazer aquilo. Capaz de aniquilar um brutamontes estuprador. De vingar não sei quantas mulheres que passaram pela mesma agonia que passei.
De alguma forma, desprezava o gênero masculino. Não tivera nenhuma boa experiência com os homens, até então. Meu ex-namorado era um imbecil que me fazia dividir as contas dos bares com ele, e às vezes até me pedia para pagar. Dormia o domingo inteiro. Roncava, urinava fora do vaso, coçava as partes pudendas em público. Ia ao cinema de camiseta regata. Um desastre.
Os outros namoradinhos que tive, os casos, os ficantes, francamente, não eram melhores. Todos uns burrões, sem cultura, sem educação, sem condições de partilhar experiências com uma mulher como eu. Pior: os homens só pensam em sexo, mas, mesmo só pensando em sexo, não são capazes de patrocinar bom sexo para uma mulher que seja minimamente exigente. Queria gostar de mulher, para descartá-los em definitivo da minha vida. Para falar a verdade, não havia desistido da idéia de experimentar uma mulher, algum dia.
Além do meu desprezo pelos homens, havia outra razão para que me transformasse numa fera assassina: o dinheiro. Sei que é baixo, sei que é rasteiro, mas não vou disfarçar, serei sincera: o dinheiro me motivava. Minha família é pobre, sempre enfrentamos dificuldades, até porque meu pai abandonou minha mãe, e ela teve que criar a mim e a meus quatro irmãos sozinha. Então, todo aquele dinheiro que obtive do canalha que eliminei me dava esperanças de poder repetir o golpe algumas vezes. Várias vezes.
Por que não viver disso? Sairia pela noite, seduzindo os cafajestes. É muito fácil, qualquer mulher que não seja horrível leva um homem para a cama. Capturada a presa, iria para o apartamento dele. Não poderia ser motel, tinha de ser a casa dele, o que eliminava os homens casados e os que morassem com os pais. Quando ele estivesse relaxado, achando-se muito conquistador, zzzip!
Pensei um pouco. Pensei muito: aquilo teria de ser bem feito, bem planejado. Meu primeiro assassinato fora um sucesso: a polícia estava desnorteada, os jornais, as TVs e as rádios falavam em latrocínio, ninguém vira ou ouvira nada. Só que imprevistos acontecem, teria de me precaver. Corri para a internet, quem tem acesso à internet tem acesso ao mundo todo.
Adquiri facas de tamanhos pequeno e médio afiadíssimas, próprias para serem guardadas na bolsa e para cortes do tipo rápido e profundo que pretendia abrir nas gargantas dos machos porto-alegrenses. Adquiri sprays de pimenta disfarçados em tubinhos de batom e bastões de eletrochoque a fim de imobilizar os vagabundos antes de degolá-los.
Calculei que não conseguiria encontrar muitos otários que morassem em prédios sem porteiro e câmeras de vigilância, como aquela besta que liquidei. Quer dizer: teria de agir disfarçada, muitas vezes. O que não é nada complicado, para uma mulher. A mudança radical da cor do cabelo já é suficiente para confundir identidades.
Assim, adquiri perucas loiras e ruivas de todos os tamanhos, lentes de contato verdes e azuis, roupas novas, equipamentos para bronzeamento rápido. Sentia-me uma agente secreta. Nikita, a assassina de aluguel! Disse aos meus pais que havia recebido um aumento e aluguei um pequeno apartamento no Moinhos de Vento. Mobiliei-o razoavelmente bem. Estava feliz, feliz, feliz.
Mas meu dinheiro começava a diminuir. Tinha de encontrar uma vítima o quanto antes. Tinha de matar. Quando a noite de sexta chegou, preparei-me para a minha primeira aventura como fera da noite de Porto Alegre. Que não ia acabar bem. Que não ia acabar nada bem.
Eu ria e ria e ria, e ele ria também. Estava tudo meio brumoso, meio difuso, os eflúvios da tequila enuviavam minha cabeça. Rodamos por uns 15 ou 20 minutos, até chegarmos a um prédio de uns seis ou sete andares e grandes sacadas numa rua arborizada da Bela Vista.
— Onde é que nós estamos? — perguntei, enquanto o carro mergulhava no escuro da garagem.
— Vamos tomar uma champanhe no meu apartamento — disse ele, manobrando o volante e sorrindo de lado.
— Hmm… — sorri de volta. — Champanhe…
Não me entusiasmava com a idéia de subir ao apartamento dele, mas não queria parecer uma caipira assustada. Queria mostrar que tinha o controle da situação. Beberia um ou dois copos de champanhe, deixaria que me beijasse uma ou duas vezes, e depois iria embora. Nada de intimidades. Permaneceria vestida, uma monja. Pediria que me levasse em casa. Talvez no dia seguinte, se gostasse do seu comportamento, aceitasse um convite para jantar ou ir ao cinema. Talvez.
Entramos. Até que o apartamento era bem decorado. Fiquei surpresa.
— Não parece apartamento de solteiro — comentei, balançando a cabeça, admirada.
— Já fui casado — respondeu, enquanto manuseava uma garrafa de champanhe que tirara da geladeira da cozinha.
A rolha saltou, ele encheu duas taças pela metade. Brindamos. Ao primeiro gole, ele me tomou pela mão e me puxou até o sofá da sala de estar. Foi meio brusco, mas não me importei. Achei engraçado. Até aquele momento, estava achando tudo engraçado. Sentamos. Cruzei as pernas e minha minissaia subiu. Ajeitei-a recatadamente, embora percebesse que ele havia cravado os olhos nas minhas pernas. As pernas são um dos meus trunfos, bem sei. São compridas e fortes, são macias e lisas.
Em um segundo, ele pousou a mão nas minhas coxas e começou a alisá-las, enquanto me beijava na boca sofregamente, talvez mais sofregamente do que devesse. Enfiou a mão por baixo do meu vestido, chegou à calcinha, estava me sufocando com aquele beijo. Tentei me livrar, puxei a mão dele, empurrei-o para trás. Em vão. A mão dele já estava entre as minhas pernas, tentando enfiar-se em mim. Fiquei angustiada, fiquei realmente nervosa, pedi: — Pára! Pára, por favor!
Ele resfolegava: — Gostosa! Gostosa!
— Pára!!! — insisti.
— Gostosa.
Tentava arrancar minha calcinha. Ele era forte, muito mais forte do que eu. As taças de champanhe já haviam rolado pelo tapete, ele montara sobre mim, me imobilizando, me deixando sem ar. Eu implorava: _ Me larga! Me larga!
A mudança de atitude dele foi rápida demais, não me deu tempo de raciocinar. Em um átimo, havia se transformado num animal, em um ser com o qual seria impossível argumentar, que tinha apenas vontade, apenas instinto. Ao mesmo tempo, ele tinha muita segurança, muita confiança no que fazia. Já devia ter feito aquilo outras vezes. Era evidente que tinha feito.
De alguma forma, conseguiu puxar minha calcinha. Ele sabia o que fazia. Eu não conseguia me mexer. Sentia-me impotente, à mercê dele, sentia-me um bicho. Entendi que ele não ia parar, que nada o impediria. Entendi que ele iria me violentar ali mesmo e que eu não poderia reagir. Decidi gritar. Enchi os pulmões de ar e preparei-me para emitir o maior grito da minha vida.
-—Socor — comecei, e não terminei. — O desgraçado tapou minha boca com sua manopla e me roubou o ar.
Tinha dificuldades para respirar. Tinha dificuldades para me mexer. Dois segundos depois, ele estava em cima de mim, arfando e arremetendo, um monstro, um monstro.
Senti muita dor, mas resolvi ficar quieta, parada, quem sabe assim ele terminasse logo. Não chorei, não reclamei mais. Esperei, só, esperei com uma frieza e um ódio que não sabia poder ter dentro de mim. Aquilo não parava mais. Aquilo era nojento. Esperei, esperei, esperei, e foi como se estivesse morrendo enquanto esperava.
Quando ele terminou, rindo, respirando pesadamente, saiu de cima de mim e jogou-se para o outro lado, as calças arriadas até as canelas, o pescoço apoiado no braço do sofá, a cabeça atirada para trás. Continuou rindo e repetindo: — Foi bom, foi bom… — e ria e repetia: - foi bom…
Até hoje não entendi como, mas, naquele exato instante, eu já sabia o que fazer. Ergui-me com os dentes rilhados, sentindo a força do ódio me inundar. Estendi o braço até um porta-canetas que havia sobre a mesa, um porta-canetas para o qual olhava fixamente enquanto ele me violava, e de lá saquei um estilete. Fiz a lâmina saltar. Ele notou que algo estava acontecendo, mas achava-se tão absorto em seu próprio gozo, tinha tanta confiança na sua força, que não se mexeu.
Girou os olhos, fez menção de levantar a cabeça ou de falar, mas, antes que pudesse fazer ou dizer algo, eu agi: passei-lhe a lâmina no pescoço com toda a força que reuni no meu braço direito, degolei-o como se fosse um porco, e foi como um porco que ele se comportou, grunhindo e gorgolejando e sangrando às catadupas, até cair do sofá e se estrebuchar no tapete da sala, os olhos esbugalhados de pavor, esvaindo-se diante de mim, que o encarava de pé, calma, o estilete na mão, vendo com ódio o meu violador nas vascas da morte, em convulsões, em agonia, até o fim. Até o fim!
CAPÍTULO 3°
Não senti remorso. Não me arrependi. Fiquei observando, enquanto ele agonizava. Permaneci de pé sobre o tapete, tesa, vidrada, o estilete na mão, pingando sangue. Era estranho. Era como se não estivesse ali. Como se viajasse fora do meu corpo, vendo a cena de cima, de longe, uma espectadora, não uma protagonista.
E o mais curioso: não sentia nada. Nem raiva tinha mais. Como podia aquilo? Como podia, em meio a um acontecimento tão traumático, ficar fria daquela forma, quase indiferente?
Quando ele parou de se mexer, quando ficou completamente imóvel, sentei-me na ponta do sofá. Falei alto para mim mesma: — Tenho que pensar. Tenho que pensar, tenho que pensar, tenho que pensar…
Mas não conseguia. Não conseguia pensar, nem sentir. Estava vazia.
Não sei quanto tempo continuei ali, sentada, olhando para a mesa de centro da sala, para o porta-canetas de onde havia tirado o estilete. Então, falei baixinho: — Por que é que esse cara colocou um porta-canetas na mesinha de centro da sala?
E aí, até hoje não acredito, ri. Ri, juro. Sentada ao lado de um cadáver, tendo na mão um estilete manchado de sangue, sendo eu própria a assassina, ainda assim, ri. E, enfim, pus-me a pensar.
E a agir.
Ergui-me. Olhei para o estilete que empunhava. Fechei-o. Limpei o sangue no sofá. Uma heresia, o sofá era de couro legítimo, devia ser caríssimo. Mas, afinal, quem ia se importar com aquele sofá agora? O Mensageiro da Caridade, talvez…
Tomei minha bolsa, que estava atirada numa poltrona, e nela enfiei o estilete. Concluí que fora uma decisão muito sensata. Sumir com a arma do crime iria confundir a polícia. Pensando na polícia, pensei também em impressões digitais. Impressões digitais! As minhas estavam espalhadas por toda parte. Fui até a cozinha, apanhei um pano de pratos e limpei cada pedaço de móvel em que toquei.
Lavei as taças e guardei-as em um armário. Esvaziei a garrafa de champanhe na pia e joguei-a no lixo da área de serviço. Ao voltar para sala, chutei algo macio. Minha calcinha! Imagina se esqueço minha calcinha… Vesti-a.
Usando sempre o pano de prato para evitar deixar impressões digitais, passei a abrir gavetas e armários, a revirar tudo. Queria dar a impressão de que o crápula fora alvo de um assalto. Olhei para ele. Ainda estava com as calças arriadas. Desgraçado! Fui até lá e, com alguma dificuldade, levantei-lhe as calças e as fechei. Deu-me trabalho, aquilo. Era um desgraçado mesmo.
Voltei para os armários e as gavetas. Procurava algo de valor. Não havia nada que pudesse levar, a não ser aparelhos eletrodomésticos e, por favor!, eu não iria sair dali carregando uma televisão.
Finalmente, deparei com um armário trancado à chave. Bom sinal. Mas como arrombá-lo? Pensei, pensei, corri para a cozinha, depois para a área de serviço. Debaixo do tanque, havia uma caixa de ferramentas. Perfeito. Peguei uma chave-de-fenda e, gastando alguns minutos e muito suor, escancarei a portinha do armário.
Tive sorte: na primeira divisão do armário, dentro de um envelope pardo, reluziam um passaporte e maços de dinheiro. Ele devia estar preparando alguma viagem. Saquei o dinheiro do envelope, sofregamente. Arregalei os olhos: era muito dinheiro! Um maço de reais com, talvez, uns mil reais, e vários maços de euros. Vários maços de euros! Vários, vários! Fiquei excitada. Sorri. Acabara de matar um homem, e sorria. Nem eu mesma me conhecia.
Soquei o dinheiro na bolsa. Dei mais uma geral no apartamento. Revirei-o todo, experimentando certo prazer destrutivo. Consultei o relógio: tarde, já. Hora de ir embora. Apanhei de cima do aparador da sala a chave do carro do canalha e o controle remoto da porta da garagem. Ia saindo, e tive uma última idéia. Corri para o quarto e escolhi no roupeiro um casaco com capuz. Com o rosto escondido pelo capuz, para o caso de alguém me ver sair, desci para a garagem, entrei no carro, abri a porta da garagem e fui embora.
Não havia ninguém por perto, ninguém na rua, nada. Maravilha. Dirigi até a Protásio Alves, estacionei o carro numa rua vicinal. Caminhei três quadras até um ponto de táxi que sabia haver ali perto, entrei num carro e pedi para me levar ao Centro. No Centro, caminhei mais duas quadras até o terminal de ônibus.
Embarquei num ônibus para o Menino Deus e cheguei em casa ao amanhecer, exausta, nervosa, confusa.
Tomei um longo banho quente. Enquanto me lavava, chorei. Mas não foi por comiseração, não foi de tristeza. Foi de raiva. Por saber que, a partir daquele dia, minha vida não poderia mais ser a mesma. Que teria de me tornar outra Cris. Teria de me tornar uma fera.
CAPÍTULO 4°
É fácil matar. Um corte no pescoço, zzzip!, e em um segundo um homem de quase um metro e noventa de altura está no chão, estrebuchando, indefeso, vertendo uma cachoeira vermelha pela garganta. Sentia-me poderosa, sabendo que fora capaz de fazer aquilo. Capaz de aniquilar um brutamontes estuprador. De vingar não sei quantas mulheres que passaram pela mesma agonia que passei.
De alguma forma, desprezava o gênero masculino. Não tivera nenhuma boa experiência com os homens, até então. Meu ex-namorado era um imbecil que me fazia dividir as contas dos bares com ele, e às vezes até me pedia para pagar. Dormia o domingo inteiro. Roncava, urinava fora do vaso, coçava as partes pudendas em público. Ia ao cinema de camiseta regata. Um desastre.
Os outros namoradinhos que tive, os casos, os ficantes, francamente, não eram melhores. Todos uns burrões, sem cultura, sem educação, sem condições de partilhar experiências com uma mulher como eu. Pior: os homens só pensam em sexo, mas, mesmo só pensando em sexo, não são capazes de patrocinar bom sexo para uma mulher que seja minimamente exigente. Queria gostar de mulher, para descartá-los em definitivo da minha vida. Para falar a verdade, não havia desistido da idéia de experimentar uma mulher, algum dia.
Além do meu desprezo pelos homens, havia outra razão para que me transformasse numa fera assassina: o dinheiro. Sei que é baixo, sei que é rasteiro, mas não vou disfarçar, serei sincera: o dinheiro me motivava. Minha família é pobre, sempre enfrentamos dificuldades, até porque meu pai abandonou minha mãe, e ela teve que criar a mim e a meus quatro irmãos sozinha. Então, todo aquele dinheiro que obtive do canalha que eliminei me dava esperanças de poder repetir o golpe algumas vezes. Várias vezes.
Por que não viver disso? Sairia pela noite, seduzindo os cafajestes. É muito fácil, qualquer mulher que não seja horrível leva um homem para a cama. Capturada a presa, iria para o apartamento dele. Não poderia ser motel, tinha de ser a casa dele, o que eliminava os homens casados e os que morassem com os pais. Quando ele estivesse relaxado, achando-se muito conquistador, zzzip!
Pensei um pouco. Pensei muito: aquilo teria de ser bem feito, bem planejado. Meu primeiro assassinato fora um sucesso: a polícia estava desnorteada, os jornais, as TVs e as rádios falavam em latrocínio, ninguém vira ou ouvira nada. Só que imprevistos acontecem, teria de me precaver. Corri para a internet, quem tem acesso à internet tem acesso ao mundo todo.
Adquiri facas de tamanhos pequeno e médio afiadíssimas, próprias para serem guardadas na bolsa e para cortes do tipo rápido e profundo que pretendia abrir nas gargantas dos machos porto-alegrenses. Adquiri sprays de pimenta disfarçados em tubinhos de batom e bastões de eletrochoque a fim de imobilizar os vagabundos antes de degolá-los.
Calculei que não conseguiria encontrar muitos otários que morassem em prédios sem porteiro e câmeras de vigilância, como aquela besta que liquidei. Quer dizer: teria de agir disfarçada, muitas vezes. O que não é nada complicado, para uma mulher. A mudança radical da cor do cabelo já é suficiente para confundir identidades.
Assim, adquiri perucas loiras e ruivas de todos os tamanhos, lentes de contato verdes e azuis, roupas novas, equipamentos para bronzeamento rápido. Sentia-me uma agente secreta. Nikita, a assassina de aluguel! Disse aos meus pais que havia recebido um aumento e aluguei um pequeno apartamento no Moinhos de Vento. Mobiliei-o razoavelmente bem. Estava feliz, feliz, feliz.
Mas meu dinheiro começava a diminuir. Tinha de encontrar uma vítima o quanto antes. Tinha de matar. Quando a noite de sexta chegou, preparei-me para a minha primeira aventura como fera da noite de Porto Alegre. Que não ia acabar bem. Que não ia acabar nada bem.
Texto extraído do blog do David Coimbra